29 dezembro 2007

Ele foi capaz de introduzir
no movimento dos conceitos
o movimento da vida
entrevista com José Gil

Podemos pensar num modo de conceber a idéia de objeto que não seja a habitual. Em geral, representamos o objeto como um ser, isto é, como alguma coisa de contornos limitados, como alguma coisa que existiria o lance do divino jogador de dados estava claramente a nosso favor dessa vez. Estávamos fechando o "Dossiê Gilles Deleuze", quando ficamos sabendo que na semana seguinte José Gil estaria em Porto Alegre para participar do evento "Corpo, arte e clínica", promovido pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a coordenação das professoras Tânia Mara Galli Fonseca, Cláudia Maria Perrone e Selda Engelman. E, ali, naquele "anexato" ponto do virtual em que a diferença intromete uma idéia, nos ocorreu que uma entrevista com José Gil ajudaria a dar o toque final no agenciamento que estava produzindo o nosso dossiê. Parecia difícil obter a entrevista, mas não foi. Tânia Fonseca, amigável e gentilmente, dispôs-se a fazer chegar a José Gil o nosso convite, que foi imedia­tamente aceito. A entrevista foi realizada no dia 7 de abril de 2003, no Hotel Embaixador. As questões foram feitas por Sandra Mara Corazza e Tomaz Tadeu. Estavam também presentes Paola Menna Barreto Gomes e Fabiana de Amorim Marcello. A transcrição da gravação foi feita por Fabiana de Amorim Marcello, com edição final de Sandra Mara Corazza e revisão de Tomaz Tadeu. Podia-se sentir, talvez, uma certa tensão no ar, quando começamos a entre­vista. Nenhum de nós conhecia pessoalmente José Gil. Tínhamos ambos, Sandra e Tomaz, nos preparado para a entrevista, mas não podíamos deixar de nos sentir um pouco intimidados por ter de fazer questões a alguém por cujo pensamento nutríamos enorme admiração e respeito. Mas a suavidade, a generosidade e a simpatia de José Gil acabaram, pouco a pouco, por nos deixar todos muito à vontade e muito tranqüilos. E foi comovente, muito comovente, vê-lo falar tão "simplesmente" sobre coisas tão intensas. A tal ponto que quando ele caracte­rizava o "mestre" Deleuze, não podíamos deixar de pensar que estava caracteri­zando a si próprio. Nascido, em 1939, em Moçambique, José Gil estudou filosofia na Universi­dade de Paris e é professor na Universidade Nova de Lisboa. Algumas de suas publicações: Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações (Relógio D' Água, 1987); Monstros (Quetzal, 1994); O espaço interior (Presença, 1994);A imagem­-nua e as pequenas percepções (Relógio D' Água, 1996); Metamorfoses do cor­po (Relógio D' Água, 1997); Diferença e negação na Poesia de Fernando Pes­soa (Relume-Dumará, 2000); Movimento total: o corpo e a dança (Relógio D' Água, 2001). Sobre o confronto Badiou/Deleuze, mencionado de passagem por José Gil nesta entrevista, pode-se consultar seu ensaio "Quatre méchantes notes sur un livre méchant"1, bem como os ensaios de Arnaud Villani2, Eric Alliez e do próprio Alain Badiou sobre o mesmo tema, no site da versão on-line da revista Multitudes (Sandra e Tomaz).
Educação & Realidade: Gostaríamos de começar com algumas questões, vamos dizer mais "pessoais" ou mais "humanas", acerca de sua trajetória inte­lectual, de sua formação, sua relação com a obra de Deleuze, para depois fazer questões relativas aos interesses expressos nos seus livros que conhecemos. Poderia fazer isso brevemente?
José Gil: Sim. O difícil é que seja breve, mas é muito fácil, porque eu comecei realizando uma licenciatura em matemática, depois mudei para filosofia quando saí de Portugal e fui para a França. E eis que essa filosofia que encontrei na França (eu vinha de uma ditadura onde a história da filosofia que contavam terminava em Kant, depois de Kant não havia mais nada... ), maravilhou-me por­que eram mestres famosos, como Jean Wahl e Henri Gouhier, por exemplo, pes­soas muito conhecidas; ainda fui do tempo em que se podia ver na rua pessoas como Merleau-Ponty e Sartre... Era um clima especial. Na Sorbonne, que era a única faculdade de Letras que havia nesse tempo em Paris, nós estávamos sob a influência fortíssima da fenomenologia, dada por Paul Ricoeur, que era um jovem professor, e por outros, como Birault.
Educação & Realidade: Em que ano foi isso?
José Gil: Isso era nos anos 60. Nós tínhamos professores assistentes que também seguiam a fenomenologia ou não a seguiam, mas, realmente, além da psicanálise que começava a ter sua importância com Lacan, não havia senão fenomenologia. Tínhamos um assistente que aparecia de vez em quando, que já estava em Lyon, que se chamava Gilles Deleuze e cujos cursos sobre Platão eram absolutamente extraordinários. Mas, daí a pouco, ele desaparecia. Ele era um dândi... E é curiosíssimo: dândi tem a ver com devir. No início, Deleuze era um dândi, depois deixou de ser, passou a ser outra coisa, passou a ser outros devires. No final dos anos 60, nós – "nós", não era só eu, e não tem nada de original porque essa trajetória era a mesma de muitos estudantes de filosofia na França – aspirávamos a outra coisa que não à fenomenologia, porque ela, em nosso entendimento, tinha esgotado a própria filosofia. E maio de 68 rebentou... Então, vimos, por um lado, desaparecerem muitos de nossos colegas de formação filo­sófica, que foram para outras disciplinas, para a Lingüística, para a Psicanálise. Muitos de nós abandonamos a filosofia, para viver. Eu, por exemplo, vendi a minha biblioteca na Feira da Ladra. E não me arrependo.
Educação & Realidade: A biblioteca de filosofia inteira? José Gil: A biblioteca de filosofia inteira. Vivia-se em um ambiente extrema­mente complicado com políticos, com De Gaulle. Um problema político que se espraiava sobre todo o campo social. Educação & Realidade: Isso aconteceu antes de 68?
José Gil: Antes do movimento de 68. Como eu disse, havia uma espécie de estilhaçamento por causa das questões universitárias, do próprio pensamento filosófico, através dos nossos mestres, da educação filosófica que recebíamos, etc. Acontece que, já no ano de 68 e durante 69, havia um rumor que corria em Paris, algo extraordinário que estava sendo feito em Vincennes, por Deleuze, o qual, entre muitos, como Derrida, tinha sido um dos meus professores assisten­tes. E, eu fui a Vincennes! Fui a Vincennes e isso modificou completamente a minha vida, assim como para muita gente. Modificou a minha vida porque eu tinha renunciado à filosofia e, de repente, deparei-me com alguém que falava diferente e cuja pedagogia era totalmente diferente daquilo que nós chamáva­mos um "mandarinato!". Alguém que estava experimentando o Anti-Édipo e cujas idéias, sobretudo sobre o desejo, na época, eram idéias jamais ouvidas antes por nós. O que fazia com que aqueles cursos de Deleuze fossem tortuo sos, com muita gente, com uma intensidade extraordinária de pensamento, com intervenções, com críticas. Havia doidos, havia personagens extraordinários, havia psicanalistas, havia estudantes, havia de tudo! E aí, eu, como muitos outros, me reconciliei com a filosofia. Esse encontro com Deleuze não foi com o Deleuze que eu já conhecia, mas com o novo Deleuze, um Deleuze não dândi, um Deleuze que parecia mais um Humphrey Bogart, vestido sempre com aquele impermeable, com barba por fazer há três, cinco dias. Às vezes, ele aparecia com um olhar como se tivesse vivido experiências estranhas, o que possivelmente não era falso. Esse encontro permitiu-me de novo pensar filosoficamente e foi uma experiência que aconteceu a muita gente. Depois, em um seminário de Deleuze, eu conheci uma mulher corsa que também repercutiu em meu trajeto intelectual. Eu era professor-assistente em Vincennes, dois anos depois aban­donei tudo e fui com ela para Córsega.
Educação & Realidade: Desculpe a indiscrição: amorosamente?
José Gil: Amorosamente. Foi uma outra experiência radical porque, se eu me interessei pelo corpo, digamos de modo explícito, filosoficamente, foi pela reali­dade que eu encontrei na Córsega. Eu era um ser urbano, sempre vivera nas cidades e de repente encontrei-me com gente diferente. Fazendo uma compara­ção: eu tive a mesma experiência que tem um etnólogo francês, que nasceu em Paris, viveu sempre em Paris, e que sai de Paris para viver dois anos com os ianomâmis na Amazônia. E volta de lá completamente transformado. Eu vi muitas pessoas viverem essa experiência, na qual a relação do si com o mundo, com as coisas, passa a ser completamente diferente. Tem que se repensar tudo. Ora, acontecia, na Córsega, uma relação fortíssima com os elementos, com as forças sociais, porque era uma época revolucionária. Era época dos assaltos às caves de vinho, em Aléria, com intervenção de tropas francesas, morreram pessoas, etc. E isso eu vivi, o que quer dizer que eu vivi uma experiência completamente nova, que dava um lugar essencial ao pensamento e ao corpo, e que era o pensamento que estava sendo reelaborado através de Deleuze. Ao mesmo tem­po, tudo isso se atropelava com outros campos, com o campo político, com o campo social, porque a sociedade córsega é uma sociedade completamente específica, as relações são extraordinariamente afetivas, a noção de intensidade é uma noção que tem ali imediata e constantemente a sua efetivação. Eu escrevi um livro sobre a Córsega, no qual contava essa história tão intensa...
Educação & Realidade: Qual é o seu livro sobre a Córsega?
José Gil: Chama-se – o título é muito feio – La Corse, entre la liberté et la terreur [Paris: Éditions de la Diffèrence, 1984]. A intensidade era tanta que eu vi, por exemplo, franceses não agüentarem a Córsega. As relações de amizade, as relações sociais, as relações de amor eram de tal maneira intensas que obrigavam à reciprocidade. Vinha o francesinho 208 ▲ urbano que tinha também que corresponder a elas e não era possível porque não tinha intensidades suficientemente fortes. Então, ele ia-se embora. Educação & Realidade: Como português, o senhor tinha um pouco dessa coisa francesa, mas menos talvez... José Gil: Eu tinha uma coisa dessas francesas, sim, só que eu vinha da África. E o filho de um colono, um branco na África, vive uma experiência primor­dial de intensidade. É uma experiência com os elementos, por exemplo, uma experiência que se tem com as pessoas próximas, ou com as pessoas às quais nos ligamos afetivamente, que consiste numa experiência não mediada pelas palavras, muitas vezes, porque a linguagem do mundo está nos postos indíge­nas. São os indígenas que sabem o nome das árvores, o nome das colinas, o nome de tudo. Nós só temos a linguagem da geografia da metrópole, que não corresponde às flores, nem a nada. O resultado é que a relação entre nós e o corpo, com o nosso corpo e os elementos, é uma relação imediata, fortíssima também.
Educação & Realidade: O seu livro principal sobre o corpo Metamorfoses do corpo [Lisboa: Relógio D' Água, 1997] é dessa época?
José Gil: Pertence a essa época, mas antes eu vivi na Córsega, depois o escrevi. Educação & Realidade: Podemos dizer que Metamorfoses do corpo, além dessa vivência na Córsega, reflete a sua fase mais fenomenológica? José Gil: (Pausa) Não. Educação & Realidade: Nós percebemos assim, sobretudo, se o comparar­mos com a sua produção atual sobre Deleuze. José Gil: Talvez. Educação & Realidade: Talvez, fosse uma obra de transição. José Gil: Talvez fosse. Eu sempre penso, ainda hoje penso que a fenomeno­logia é, num certo campo, imprescindível, como no da descrição dos fenômenos. Acontece hoje que os fenômenos mais importantes são outros. Bem, o meu trajeto foi esse. Depois tive que voltar da Córsega por razões financeiras. Não conseguia lugar como professor de liceu e a ilha é fechadíssima. Fui expulso de um colégio particular, onde eu dava aulas de filosofia, unicamente por razões administrativas, porque ajudei uma pessoa que queria se inscrever na seguran­ça social. Ora, então, não se fazia isso. O colégio não inscrevia as pessoas na segurança social, como era de lei, e eu solidarizei-me com elas e o colégio me expulsou. Por dois anos, vivi outra experiência extraordinária, até que voltei definitivamente para Paris, fiz a tese de doutorado e fui a Portugal para ver a revolução, até que, finalmente, ofereceram-me um lugar que eu aceitei, e foi então que fecharam todas as universidades da França. Todas. Eu fiquei entalado, para não dizer encurralado, em Portugal, porque é um país muito difícil. Pronto, mais nada!
Educação & Realidade: Que não é pouco! Mas, nós ainda queríamos per­guntar, com base nessa sua exposição, se aquela vez que o senhor largou a filosofia foi "para vi ver"?
José Gil: Sim, era um sentimento geral. A fenomenologia cortava-nos da vida, justo ela que fora feita precisamente para criar um laço imediato com as coisas! Ela nos cortava completamente da vida, isso quer dizer que era um peso: os cursos do Ricoeur, do Birault sobre o Heidegger... tudo isso era um peso! O novo discurso que apareceu com Deleuze foi, para centenas de antigos alunos, uma espécie de descoberta, um (re)contato, uma (re)elaboração de um certo tipo de pensamento ao qual se tinha renunciado. Descobríamos que podíamos pen­sar Kant ou Husserl de uma outra maneira, sem que se tivesse necessariamente que fazer qualquer ligação de força.
Educação & Realidade: Mas, Deleuze, ele próprio não era fruto dessa peda­gogia que o Sr. estava condenando? Toda obra de Deleuze mostra o seu percur­so, que é o de um aluno de filosofia tipicamente francês de todo esse século. Deleuze faz toda essa reelaboração, contudo, ela não foi possível apenas por ele haver passado pela pedagogia do "mandarinato"? Ou não seria preciso passar por ela, ou talvez passar de outra maneira?
José Gil: Acho que sim. Como quando ele diz, por exemplo, que não poderia ter escrito O Anti-Édipo [O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio & Alvim, 1966, escrito em colaboração com Félix Guattari), nem Mil platôs [Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, vol. I ­1995; vol. 2-1995; vol. 3-1996; vol.4-1997; vol. 5-1997, escrito em colabo­ração com Félix Guattari], nem, finalmente, ser o segundo Deleuze que ele foi, se não tivesse encontrado o Félix Guattari. Eu vejo nisso precisamente uma experiên­cia de práticas e de pedagogias novas. Deleuze era um homem integrado.
Educação & Realidade: Integrado?
José Gil: Integrado no sistema filosófico, era um grande comentador da filosofia. Tinha escrito um livro sobre Hume [Empirismo e subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. São Paulo: Ed. 34, 2001] que tinha feito um grande sucesso, que tinha tido um enorme impacto naquele meio pequenino, que era o meio universitário francês. E toda gente já respeitava Deleuze e a sua inteligência. Ele já era reconhecido e considerado, embora, dentro do sistema. Depois, ele foi para Lyon. Então, não escreveu mais nada, ou quase não escre­veu, durante oito anos. Nesses oito anos ele elabora e reelabora o seu próprio pensamento. Se me permitem repetir uma frase que me foi dita pelo orientador de minha tese, o François Châlelet, que era muito amigo de Deleuze e foi seu com­panheiro de Escola Normal Superior – embora, dizer frases de Deleuze, ou de qualquer pessoa que esteja morta é sempre muito fácil, acontece que é verdade –, que me disse ter ouvido de Deleuze, quando este saiu da Escola Normal Superior, o seguinte: "Meu caro, eu vou ter a minha filosofia!". Foi o que ele fez.
Educação & Realidade: Deleuze tinha, então, uma ambição definida?
José Gil: Tinha, e por razões que ele mesmo explica. Deleuze era um deslo­cado relativamente a essas correntes maiores da academia. O que lhe interessa­va era o empirismo inglês, era Bergson, que sempre interessava os franceses, é claro, mas que não estava na moda. Deleuze já tinha uma outra maneira de pensar. E ele levou oito anos para saber, finalmente, o que ele queria pensar. E saíram daí os seus dois grandes livros iniciais, sobretudo, Diferença e repetição [Rio de Janeiro: Graal, 1988), seguido de Lógica do sentido [São Paulo: Perspec­tiva, 1982). Depois, se ele tivesse ficado nesses dois livros não teria sido o Deleuze que nós conhecemos. Portanto, a experiência de que vocês falam, eu a ligo, evidentemente, a maio de 68, mas também porque ele próprio dizia isso a Guattari, que, tenho a impressão, o deslocou totalmente em relação a uma certa idéia do pensamento e da ação política, que Deleuze, sem Guattari, talvez não tivesse elaborado.
Educação & Realidade: Uma das coisas que temos curiosidade de saber sobre essa relação dele com o Guattari, é se o Sr. tem alguma idéia, alguma intuição, ou até alguma informação sobre como é que se pode escrever livros como Mil platôs, por exemplo, juntos? De que maneira eles escreviam, que processo seria esse da escrita conjunta? Ficamos imaginando se seria assim: "Você escreve um parágrafo, eu escrevo outro", ou "Você escreve uma frase, eu outra; eu escrevo um capítulo, você outro"?
José Gil: Deleuze e Guattari escreviam ou capítulos inteiros cada um, ou um escrevia partes de capítulos, e depois o outro introduzia alguns trechos naquele capítulo. Por exemplo, o capítulo sobre "Rostidade" [in Mil platôs, vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996, p. 31-61): a primeira grande parte, ou dois terços dele pelo menos foram escritos por Guattari – e isso é uma coisa que eu sei por acaso.
Educação & Realidade: É possível sentir-se isso...
José Gil: Sente-se. Deleuze explica-se um pouco sobre a maneira como eles trabalhavam, como eles escreviam. E depois havia uma grande amizade A im­pressão que eu tenho é que havia uma espécie de escrita final, de revisão final da escrita, feita por Deleuze. Educação & Realidade: Pelo Deleuze? José Gil: Pelo Deleuze, sim. Por que não seria dele a escrita final? Vejam que a diferença entre a escrita de Mil platôs e, por exemplo, a de Lógica do sentido não é tão grande como a diferença de escrita entre Mil platôs e qualquer livro do Guattari. A escrita do Guattari é "impossível"... Infelizmente.
Educação & Realidade: Sobre a questão da pedagogia, que nos interessa muito, há algo que nos chama a atenção: a total falta de preocupação pedagógi­ca de Deleuze, especialmente, nos seus primeiros livros, como Diferença e repe­tição ou Lógica do sentido. Neles, não há nenhuma concessão a qualquer didatismo, não há nenhuma explicação, inclusive, várias referências são elípticas, outras são até mesmo misteriosas. Isso contrasta um pouco não só com Mil platôs, mas também com aqueles seminários seus, que foram transcritos sobre Spinoza, que encontramos na internet, ou mesmo se o escutamos naquelas entrevistas do Abecedário [O abecedário de Gilles Deleuze. In: http:// www.ufrgs.br/faced/tomaz). Parece-nos que é todo um outro Deleuze, que é toda uma outra pedagogia, que é toda uma concessão, uma explicação, que é um Deleuze pleno de exemplos concretos, com o gesto típico de fazer listas numera­das, numéroter. Há aí um contraste entre, primeiro, os livros e as aulas, segundo, entre os livros, os seminários e o Abecedário. Em termos pedagógicos, parecem ser duas pessoas completamente diferentes... José Gil: Claro! A impressão que eu tenho, porque assisti, é que a pedago­gia e o ensino de Deleuze são dois: antes e depois do corte que há entre Lógica do sentido e o Anti-Édipo, ou seja, maio de 68. Assisti a essas duas maneiras de ensinar e verifiquei o seguinte: Deleuze era ofuscante antes de maio de 68, mais pejas idéias, pela inteligência e por um charme que ele tinha. Ele tinha um charme que sabia que tinha, ele estava consciente desse charme, e o usava um bocado ironicamente, utilizando as luvas brancas (por causa das unhas, possivelmente) e a maneira como falava com as mãos, no quadro. Todas aquelas eram estratégias de sedução. Depois de maio de 68, sua pedagogia modifica-se completamente. A impressão que eu tenho é que o próprio Deleuze foi aprendendo a sua pedago­gia nos primeiros anos de experimentação. Eu chamo isso de "a experimentação pedagógica do ensino do Anti-Édipo". Porque o Anti-Édipo é inimaginável, não se reproduziu, nem Foucault, nem Châtelet, ninguém fazia cursos assim. As aulas de Deleuze eram apinhadas de gente, fumo e fumaça por todo o lado, de vez em quando, as pessoas gritavam, tinha-se que abrir as janelas e ele espera­va, como sempre, muito calmo. Depois, alguns intervinham, riam-se para Deleuze e diziam: "Deleuze, ainda estás muito longe da loucura!" (como dizia um louco que lá estava). E Deleuze respondia: "Mas eu bem procuro, eu bem procuro aproximar-me!". Não havia, aparentemente, nenhum mandarinato, quer dizer, nenhuma hierarquia entre o professor e os alunos. Isto mesmo materialmente: ele sentava-se em uma cadeira, no mesmo nível que todos os outros que o rodeavam ou que ficavam em pé... Educação & Realidade: E essas aulas nunca eram lidas? José Gil: Não eram lidas, embora ele trouxesse papéis. De vez em quando, ele olhava para os papéis e falava – isso é o que eu admirava extraordinariamente nele, porque eu também ensino e tem a ver com a voz – em um tom normal de voz. Ou seja, quem ouvia, ouvia, e quem não ouvia, não ia pedir-lhe para levantar a voz, o que implicava que às vezes era muito difícil ouvi-lo. Depois, quando ele passou a ensinar em Vincennes, as aulas eram completamente diferentes: pare­cia que não se ouvia uma mosca, porque se tinha que ouvir o que ele dizia.
Educação & Realidade: O senhor ouviu também Foucault. Gostaríamos de saber o contraste. José Gil: Completamente diferente. As aulas de Deleuze eram extremamente détendues – quer dizer, extremamente acolhedoras para qualquer singularidade que aparecesse por lá, da mais bizarra até as manias mais esquisitas de alguém –, eram aulas em que não havia propriamente disciplina, no entanto, tudo era con­duzido por um pensamento poderoso que se manifestava. Quando havia dema­siado barulho, Deleuze calava-se, nunca manifestava aborrecimento, nem eleva­va a voz quando se passavam certas coisas e se houvesse demasiado barulho, demasiadas interrupções, ele se calava, esperava.
Educação & Realidade: E as aulas de Foucault eram mais ao estilo da cátedra?
José Gil: Eram catedráticas e eram tensíssimas. Saía-se das aulas de Foucault em estado de choque, quase como as de Lacan, mas Lacan era diferente... Foucault dava aulas que eram uma corrente de tensão e de inteligência permanentes que não repousavam durante duas horas. Nós o recebíamos como se estivéssemos bebendo de uma fonte, com uma tensão sempre dura, agudíssima e que se impunha também por sua voz, por seu ritmo, pela impossibilidade de intervir nos seus cursos. Isso era muito esquisito... Nos cursos do Collège de France era nítido: praticamente, não havia intervenções. Não é que Foucault fosse um homem de cátedra, mas ele expunha as suas investigações desse modo. Ele era assim, um homem cuja inteligência agudíssima se manifestava numa tensão permanente, ininterrupta. Já Deleuze era completamente diferente. Se quiserem ter uma boa idéia – possivelmente para pensarem depois, porque vocês têm trabalhado a questão da pedagogia e da educação em Deleuze –, eu tenho vários exemplos sobre a recepção de sua pedagogia pelos alunos que estavam nos cursos de Deleuze e que eram, por acaso, quatro mulheres que vinham de domí­nios completamente diferentes, sem se conhecerem. Uma era pintora, professora de gravura e pintura; outra era jornalista; a outra era estudante de música e dança; e havia uma crítica literária também, e todas elas, curiosamente, eu co­nhecia. Por razões diferentes, elas me abordaram por algo que eu tinha escrito, acabamos conversando e falando sobre Deleuze, que tinha acabado de morrer ­talvez fosse por isso. E eu ouvi dessas quatro pessoas totalmente diferentes a mesma idéia, às vezes exposta da mesma maneira, e que era a seguinte: "Eu fui aos cursos de Deleuze, aos seminários de Deleuze" – que ele dava em Saint­ Denis, portanto, já eram outros cursos –, "eu ia para lá e tinha a impressão que não entendia a maior parte das coisas que ele dizia, mas eu percebia o que ele dizia e a maneira como ele dizia, e isso fazia com que eu saísse de lá com uma vontade de viver, e com uma vontade de que viver fosse diferente, extraordiná­rio". Eu ouvi isso uma, duas, três, quatro vezes, e disse: "Bem, o que há aqui? Ora, eu tive essa mesma impressão também!". É que, ali, havia qualquer coisa do ponto de vista da pedagogia, precisamente.
Educação & Realidade: Queremos, agora, passar para outro tipo de questão mais temática sobre a produção de José Gil "com" Deleuze. Em seu livro Diferen­ça e negação na poesia de Fernando Pessoa [Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000], o Sr. afirma que realizará um "transporte de conceitos" (p. 9-10), signifi­cando com essa expressão o seguinte: "utilizar quase sistematicamente os con­ceitos deleuzianos para esclarecer problemas levantados pela poesia pessoana", ou seja, não comparar Pessoa e Deleuze, mas, trazer para o comentário do texto pessoano, instrumentos conceituais deleuzianos. Gostaríamos de propor o de­senvolvimento desse seu aporte, digamos "de método", atraindo-o para o cam­po da pesquisa em Educação, e pensar o seguinte: 1) se quisermos usar a obra deleuziana para criar e analisar problemas educacionais, e utilizar essa sua idéia de "transporte de conceitos", quais operações ficam implicadas nessa formula­ção "quase sistematicamente"? 2) O Sr. considera pertinente essa utilização de conceitos deleuzianos, para ler e escrever problemas da Educação, mesmo que esse transporte não seja legitimado pela afinidade que o Sr. encontrou entre os pensamentos de Pessoa e Deleuze? Mesmo que o pensamento educacional hegemônico atual não tenha qualquer afinidade com o pensamento de Deleuze, que esses pensamentos não possam ser lidos lado a lado, nem que se encontrem conceitos comuns entre eles? 3) Em outras palavras: utilizar a conceitualização de Deleuze para pensar a Educação não pode caracterizar o que o Sr. expressa como algo da ordem de "transposições forçadas ou identificações ilegítimas" (p.l2), justamente, pela ausência de afinidade entre os dois planos de pensamentos?
José Gil: Eu diria, para começar pelo mais difícil, que essa transferência de conceitos é uma transferência que se faz quase naturalmente, porque o plano de pensamento, o plano de consistência de Pessoa e Deleuze é da mesma ordem e é forjado na mesma ordem. Por outro lado, o pensamento da diferença é de tal maneira elaborado coincidentemente, num e noutro caso, sobrepondo-se mui­tas vezes de tal forma, que não é difícil pensar Pessoa através de Deleuze. Não são apenas conceitos de Deleuze que são usados para pensar a obra pessoana, mas o próprio Deleuze faz uma transferência de conceitos, por exemplo, em O que é a filosofia? [com Guattari, Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992], quando ele fala dos heterônimos para os personagens filosóficos ou personagens conceituais. Para o domínio da educação, como fazer? Eu tenho a impressão – se me permitem ­que isso tem a ver, possivelmente, com o que produzia o ensinamento de Deleuze nas pessoas, com o tempo expendido nas horas de seus seminários e, portanto, com o efeito que o seu ensinamento provocava no relacionamento entre as pessoas que diziam: "Não compreendemos tudo, longe disso, mas saímos de lá com uma vontade de viver extraordinária. Ele libertou em nós uma série de fluxos... " Essa era uma particularidade única em Deleuze, que eu atribuo à maneira como ele foi capaz (e foram muito raros os que foram capazes disso, como Nietzsche, que era um outro desse tipo, mas era diferente) de introduzir, no movimento dos conceitos, o movimento da vida. Quer dizer que aquilo que há pouco eu estava dizendo em relação a uma série de exemplos que explicam o efeito de seu ensinamento enxerta-se nessa sua particularidade única. Deleuze fazia com que a pessoa entrasse no seu movimento de pensamento e isso por contaminação, porque todo o pensamento, todo grande pensamento fascina, e o dele fascinava. Por contaminação, entrava-se dentro do pensamento que ele pensava, e que era um pensamento que – desculpem-me a banalidade – liberta­va, como ele diz. Libertava para a vida, libertava a vida das pessoas, e que não eram filósofas, não compreendiam os conceitos que ele empregava e que eram conceitos duros. Ora, a transposição para o campo da educação poderá ser feita assim: encontrar no plano da educação precisamente um pensamento e uma maneira de pensar que abram os conceitos, que forcem os conceitos a abrir-se. Isso significa muita coisa e tem de ser analisado, porque há dois grandes regi­mes de pensamento (Nietzsche caracterizou vários regimes de pensamento): nós temos conceitos que são conceitos quase entrópicos da vida, quer dizer, absorvem a vida de tal maneira e ficam secos, e essa era a maneira como nós sentíamos a fenomenologia e os conceitos fenomenológicos antes de maio de 68 – que eles já não tinham nada a ver com a vida! E depois aparece, precisamen­te, um outro filósofo que fala de Duns Scot e está a falar da vida, da nossa vida! Mas como isso é possível? Educação & Realidade: Isso poderia ser expresso, talvez, por um termo, se não nos enganamos, que só aparece em O que é a Filosofia?, de passagem e de forma meio misteriosa, e que é o termo "pedagogia do conceito"? Isso seria o que o Sr. descreveria como sendo a "pedagogia do conceito" naquela época? José Gil: Sim, possivelmente. Aliás, reparem que o conceito aparece imedia­tamente ligado a velocidades, a movimentos, etc. E, naquelas aulas, não há a velha idéia de conceito que Deleuze critica, mas a que ele praticou e que apren­deu com Duns Scot. O discurso oral e o discurso indireto, a propósito de Deleuze, tem a ver com isso. Ele tinha uma frase (que não está nos livros), quando ensina­va em Vincennes: "Não sei por que vocês acham o Anti-Édipo tão difícil. Ele é facílimo! O Anti-Édipo é para ser lido por crianças de oito anos!". (Se havia uma contestação nossa sobre a dificuldade do Anti-Édipo era porque aquilo tudo era tão novo, tão novo, que havia uma dificuldade intrínseca). E nós dizíamos: "Cá está o Deleuze com suas boutades!". Hoje, eu hesito: era uma boutade e não era uma boutade. Hesito porque é claro que, se falarmos a uma criança de oito anos no corpo-sem-órgãos, a criança não compreenderá, mas é possível que ela entre em um movimento de conceitos, quer dizer, em um movimento de pensa­mento, o qual será recebido pela criança que pode perfeitamente compreender uma noção tão complexa como a de corpo-sem-órgãos, por causa desse movimento e porque ela entrou no movimento! Então, ela poderá dizer: "Corpo-sem-­órgãos eu não compreendo bem", mas, não é isso que nos interessa e sim o movimento do conceito em que a criança entrou.
Educação & Realidade: Talvez, haja essa dificuldade da transposição de conceitos entre Deleuze e a Educação, que não seria a mesma que ele fez com a poesia de Fernando Pessoa, mas, por outro lado, há elementos no pensamento de Deleuze que se conectam diretamente com questões pedagógicas e educacio­nais e uma delas é a questão do aprender. Achamos que é uma questão extrema­mente importante em Deleuze, sobretudo em articulação com toda a reflexão que ele faz sobre o pensar. Quer dizer, há essa conexão clara e uma insistência em definir o aprender que vai junto com a concepção que ele tem do pensar como diferencial, como diferenciação. No Prefácio que o Sr. escreveu para a edição portuguesa de Diferença e repetição [Lisboa: Relógio d' Água: 2000], o Sr. tam­bém insiste nessa questão do aprender, que nos interessa muito.
José Gil: A transposição pode ser feita também levando-se em conta que, na pedagogia – e isso tem a ver precisamente com a aprendizagem –, há que considerar sempre uma noção que é a noção de diferença e de unidades diferen­ciais. A diferença é uma noção, como quase todas as de Deleuze, que parece fácil, mas é das que são mais difíceis. Ora, transmitir um ensinamento, transmitir conteúdos implica o contrário de uma diferença, implica uma homogeneização, uma conservação, de tal maneira que o que se transmite continue intacto, e que seja o mais fiel possível, de modo que aquele que recebe um conteúdo, o receba o mais fielmente possível em relação ao que foi transmitido. Se nós introduzimos aí a noção de diferença tudo se transforma, tudo se torna mais rico. Eu estou convencido que o que fazia com que um ouvinte de Deleuze ouvisse Deleuze era que Deleuze estava falando, então, o ouvinte abria em si próprio as diferenças. Portanto, esse ouvinte estava descobrindo a novidade em si mesma, estava abrindo diferenças de pensamento e que eram diferenças que tinham a ver com o corpo, se fizesse uma aprendizagem como a da natação, por exemplo. Nessa pedagogia, a noção de diferença é fundamental.
Educação & Realidade: Poderia se estabelecer uma conexão com Deleuze e o que ele fazia em ato, de abrir as diferenças quando ensinava, quando falava, e Alberto Caeiro, tal como o Sr. o analisa, em sua função de "mestre", nas suas relações com os discípulos-heterônimos Reis, Campos, Soares ou com o ortônimo Pessoa-ele-mesmo?
José Gil: Sim. Pode ser decepcionante, mas posso falar. Primeiro, lembrem que Caeiro diz que "aprender é primeiro aprender a desaprender". Ora, aprender a desaprender era o que fazia Deleuze imediatamente, porque ele nos confronta­va com um pensamento que era paradoxal para nós. Nós aparecíamos ali igno­rantes, sobretudo no início, não habituados com aquele pensamento novo que aparecia. Éramos levados imediatamente a uma diferença, ao desaprender aquilo que nós tínhamos aprendido. Em segundo lugar, o Caeiro diz assim, em frases ou versos: "Amo-te por seres diferente, amo-te por seres uma pedra e não uma pessoa". Quer dizer, a diferença é essa diferença que vai provocar a osmose profunda. Deleuze tinha uma capacidade absolutamente extraordinária de mar­car a diferença, mas, ao mesmo tempo em que marcava uma diferença com o pensamento de outra pessoa, ele já ia desenhando o caminho de uma osmose, ele já ia fazendo esse caminho. Ele tinha uma frase, a única frase que eu, às vezes, faço minha em relação aos meus alunos, porque eu sei que ela tem um efeito extraordinário. E foi uma frase que ele empregou comigo, mas que devia empre­gar também com várias pessoas. Ele, em primeiro lugar, era das pessoas que eu conheci, ou talvez a pessoa que eu conheci que era mais capaz de esposar o interior do pensamento de alguém. Eu estava falando a ele sobre alguma coisa da vida em Portugal e, então, veio-me o pensamento: "Mas é impossível! Este homem é de formação francesa. O que ele pode perceber disso?". E Deleuze, calmamente, continuou o meu pensamento! Continuou a expor o que eu queria dizer, ele, que nunca tinha ido a Portugal! Ou seja, ele estava em um movimento de pensamento tal que o meu próprio pensamento tinha uma espécie de curva que Deleuze continuava e que era possível porque ele tinha desposado o plano da curva interior, em que o meu pensamento estava... Assim, Deleuze entrava no pensamento como eu nunca vi ninguém entrar. E depois chegava a um ponto, em que estávamos a falar de um problema qualquer e Deleuze me dizia assim: "Você podia fazer isto e isto e isto e isto. E então isso é interessante para..." Depois, chegava a um ponto em que ele dizia: "Olha, a partir daqui, só você é que pode pensar. Ninguém mais: nem eu, nem ninguém, só você".
Educação & Realidade: Essa é a frase que o Sr. usa com seus alunos?
José Gil: Sim, e ela significa: aqui, você tem a sua diferença! E nessa sua diferença eu não entro, eu não posso entrar. E isso dá uma animação, no sentido profundo do estímulo ao pensamento para um jovem aprender. Eu também devo dizer que não faço isso como truque, mas que eu digo essa frase quando acho mesmo, e quando o aluno é capaz de fazer qualquer coisa que eu já não sei o que é.
Educação & Realidade: O Sr. acaba de descrever Caeiro e Deleuze como mestres da diferença não-relativa, que ensinam a aprender a desaprender os sentidos e os pensamentos constituídos, como aqueles mestres que constante­mente são outros e devém-outros, de modo que o contacto com eles transforma todos os que lhe falam e ouvem. Há também muitas páginas de seu livro [Dife­rença e negação... ] que, além da questão do mestre, tratam das relações entre ele e os discípulos. Gostaríamos, agora, que enfatizasse o lugar dos discípulos, dos alunos-estudantes, no caso da Educação, já que o Sr. mostra, em seu livro, que eles têm "uma face territorializada e outra desterritorializante, nômade" (p.68). Poderia falar mais sobre essas duas faces de um discípulo-aluno, pensando na Educação?
José Gil: Isso é muito difícil, muito complexo e tem a ver com o que estáva­mos falando. A face desterritorializante é a face que começa a partir do momento em que eu, professor ou professora, já não posso dizer mais nada, quer dizer, que eu já não posso mais ser seu mestre. É quando dizemos: "Agora, você vai ter que inventar o caminho pelo qual você vai ser o seu próprio mestre". Algumas filosofias orientais têm esse discurso. A face territorializada de cada aluno vem, Pessoa diria, por contraste, de ele continuar a ser discípulo, da relação frustrada ao mestre que os heterônimos pessoanos têm entre si. O que faz com que Álvaro de Campos seja um falhado e se diga, ele próprio, como um falhado. É por relação, não aos homens práticos e que triunfaram, não só aos napoleões, mas também a alguém que está sempre como mira máxima, que é o próprio Caeiro. Nesse ponto, os discípulos-alunos se territorializam e sedentarizam constante­mente, repetem-se, mas repetem-se no mau sentido, neuroticamente. Educação & Realidade: E a outra face, a desterritorializante, a face nômade? José Gil: Essa é a face da singularidade própria de cada um, de cada heterônimo, de cada aluno. A face que é uma das características do ser heterônimo, em que cada heterônimo diz: "Eu sou múltiplo, eu próprio sou múltiplo". Quer dizer, um heterônimo define-se também pela capacidade de devir completamente outro que ele mesmo. E Pessoa (Deleuze também) costumava fazer isso, como vocês sabem.
Educação & Realidade: Gostaríamos de retomar uma questão que também parece central naquilo que o senhor escreve, sobretudo, utilizando Deleuze, fazendo alguma dessas transposições da qual falávamos anteriormente, que é a noção de plano de imanência. Uma noção, inclusive, que passa por uma série de transformações em termos de nome e que, no caso do seu livro Diferença e negação... , é dotada de uma certa naturalidade de conexão, que o Sr. faz toman­do essa noção de Deleuze, e que é a conexão entre vida e pensamento. Parece que o plano de imanência tem a ver com essa conexão entre vida e pensamento, mas, no caso desse livro, nós estamos vendo um plano intelectual, que está lidando na área do pensamento, já que é um livro sobre poesia de autores ou de heterônimos que escrevem. No seu livro Movimento total: o corpo e a dança [Lisboa: Relógio d' Água, 2001], o Sr. retoma a questão do plano de imanência de forma insistente, nos vários comentários sobre diversos coreógrafos, vários teóricos da dança, etc., e parece que o senhor a retoma de uma forma, talvez mais exemplar, do que a forma como aparece no livro sobre Pessoa, talvez, muito mais ligada à vida do que ao pensamento, ou um plano de imanência que integra muito mais a vida. Enfim gostaríamos que o Sr. comentasse a sua utilização desse conceito, tão difícil, de plano de imanência.
José Gil: Não que na dança o plano de imanência seja mais importante do que, por exemplo, na poesia. O que me interessa é que o plano de imanência, o ter 218 ▲ acesso ao plano de imanência, o entrar na imanência, o mergulhar na imanência é alguma coisa imediata para um bailarino. É só por isso. Quer dizer, quando falamos a palavra imanência, ou quando, de maneira simples, explicamos o que é um plano de imanência para os bailarinos, eles aprendem logo, eles compreen­dem logo, não são necessárias grandes especulações para que eles saibam o que é um plano de imanência. Eu citei isso em um texto, não sei se lembram do Cunningham [Cap, 1, p. 31-55 de Movimento total...], sobre a fusão que é a imanência, a imanência pura e simples. Cunningham diz que os bailarinos são capazes de passar horas de esforço, horas em que há sofrimento, em que há transpiração, ou em que há o forçar de gestos, etc., para chegar a um instante somente, que é o instante de imanência. Esse instante de imanência é o instante da dança, como se eles não tivessem dançado antes, como se eles não tivessem que preparar tudo, embora eles já estivessem na imanência, como diz Deleuze, nos Mil platôs. Quer queiramos, quer não, nós estamos desde sempre com um pé na imanência se nós desejarmos, e nós desejamos a imanência, a menos que soframos da ausência de desejo. A imanência é um plano, através do qual se pode compreender uma crença (não é esta a palavra) de muitos bailarinos, que nunca leram Deleuze, nunca ouviram falar em imanência, e que dizem todos da maneira mais aparentemente absurda: "Eu não estou só a dançar, eu estou a pensar". Dançar é pensar. Eu ensinei em uma escola de dança e vocês não calculam como essa convicção é espalhada. Eles e elas estão convencidos de que dançar é pensar.
Educação & Realidade: Nessa escola de dança, o Sr. ensinou filosofia?
José Gil: Eu ensinei estética, e nessa disciplina sobre estética eu introduzi a estética da dança quando podia. E eles compreendiam logo o plano de imanência.
Educação & Realidade: Nós, que somos pesados, pouco bailarinos, é que temos mais dificuldade para entender a imanência. Em seu livro Movimento total..., isso fica muito claro, pois o Sr. mostra como a dança e o que acontece com o bailarino é algo que flui realmente sobre o plano, quer dizer, não é à toa que o senhor encontra essas relações e escreve esses textos que falam disso.
José Gil: Por exemplo, os bailarinos estão sempre, falando corriqueiramen­te, entrando em um estado que poderia parecer de inconsciência, pois, dançar é abolir um superego qualquer, é abolir a consciência refletida que comanda todos os nossos movimentos. Pelo contrário, abolir essa consciência refletida, superegóica, implica um tipo de consciência, que vai se colar àquela que eu chamei "consciência do corpo", que vai colar ao corpo, e que vai ser definida pelo que eles vivem constantemente. Por exemplo, eles vivem, o que eles cha­mam, a situação da energia passando e fluindo pelos seus membros. Essa é uma terminologia da qual eles gostam muito, mas que não sabem explicitar. O que é energia? Eles sabem que não é força, que é outra coisa. Chegam a uma idéia de "força espiritual", que é muito interessante neles, quando há conversas selva­gens com eles. A idéia é a de que quando é eliminada a consciência paralisante, e que você pode então deixar fluir a energia, é aí que, ao mesmo tempo, se está a pensar, quer dizer, que há um sentido, há um sentido que é pensamento e que se está a pensar com o corpo. Tenho a impressão que pode ser mais fácil de com­preender para nós desse modo: na dança, há um plano, no qual não há diferen­ças entre exprimir um sentido, e que por ser sentido é incorpóreo, imaterial, e, ao mesmo tempo, desenhar ou desenrolar um movimento no espaço com o corpo. É a mesma coisa.
Educação & Realidade: O que o Sr. chama "corpo do pensamento"?
José Gil: Isso mesmo. "Corpo do pensamento" que é uma noção um tanto bárbara, mas na qual eu me apoio muito porque ela me parece perfeitamente efetiva, operativa, e que parece ser utilizada por nós próprios sem que nos demos conta disso. Quando se entra numa corrente de pensamento, quer dizer, quando nós – comparando com a dança – queremos mesmo apurar qualquer coisa do ponto de vista do pensamento e é difícil e laborioso às vezes, em outras vezes, isso não ocorre, ou mesmo que não seja laborioso, que as associações venham imprevisivelmente, não se sabe como ainda não se entrou no movimen­to em que você é pensado, em vez de ser alguém a pensar. Você é pensado, portanto, é levado por esse movimento. Quando é levado e quando é pensado, então, o seu pensamento tornou-se um corpo de pensamento. Quer dizer, você sabe do seu espaço de pensamento tão bem como o corpo sabe do seu espaço no mundo. E não tenho que calcular para fazer cócegas aqui, para coçar aqui, eu já sei que tenho de coçar.
Educação & Realidade: É como dar cambalhota?
José Gil: É a questão da cambalhota.
Educação & Realidade: Muitos de nós estudamos e pesquisamos sobre a infância contemporânea, por isso, cabe formular a "questão da infância", já que ela tem centralidade, em sua leitura de Pessoa com Deleuze. Uma centralidade que o leva a afirmar que a passagem pela infância é a condição necessária ao devir-outro incessante, que atravessa toda a poesia de Pessoa, o qual "de cada vez que constrói um heterônimo, tem necessidade de mergulhar na infância" (p. 53, Diferença e negação... ). Queremos perguntar-lhe se, para a sua produção, esse mergulho, essa passagem pela infância tem importância, se o Sr. tem um devir-infância articulado ao devir-criança do sujeito de sua escrita? Para o Sr., o agenciamento de um devir-outro supõe um devir-infância, articulado ao "bloco de infância", na acepção deleuziana, como o cruzamento do devir-criança do adulto com o devir-adulto da criança, e funciona como um dispositivo de trans­formação de sua produção? Em sua produção, a infância, como para Pessoa, também é um mapa, fora de Cronos, que lhe permite criar diversas emoções, um plano construído, onde todos os devires adultos são possíveis? Nela, como quando trabalhou com os monstros, com o corpo, com a dança, com a Córsega, o Sr. reencontrou a infância e foi ela que lhe deu o poder de outrar-se, de brincar, de representar papéis?
José Gil: Bem, eu trabalhei muito nos meus seminários, que não são publi­cados, sobre a infância e sobre o devir-criança. Uma coisa é a minha infância, não sei o que eu posso tirar daí a mais do que o devir-criança, que me aparece quando eu penso e que me aparece como a todas as pessoas, ou por imagens ou por visões... Depois, há uma memória da infância que é uma memória sedimentada. Quer dizer, se por acaso você gosta de crianças e se sabe brincar com crianças, como tantas pessoas sabem, é porque há uma memória, e não uma memória de um objeto que ficou do passado. Não! A sua memória é viva. É uma memória viva do presente. Você pode devir-criança e devém-criança quando brinca com uma criança. Ora, acontece que uma criança está sempre a devir: a devir os objetos, a devir o mundo. A criança não é um ser empírico nem um ser transcendental. Ela está sempre nos dois caminhos. Quando a criança pega um avião e faz "brrrrrrr", a criança desposa o movimento do avião: ela é avião e não é avião! Este exemplo simples do devir faz com que eu possa pensar em muitos outros tipos de devires. E parece-me que o devir-criança em Pessoa é o ponto de partida para a constru­ção dos outros devires.
Educação & Realidade: Andamos todos preocupados com a escrita. Em relação ao seu processo de escrever, a seu ato de escrever, gostaríamos de saber como o Sr. escreve? Como aquele sujeito da escrita "que assinava Fernando Pessoa" e que, no "dia triunfal" de "8 de março de 1914" escreveu os "trinta e tantos poemas" (p. 46, Diferença e negação ...) de O guardador de rebanhos? José Gil escreve de um jato, imediata e totalmente, ou escreve por tentativas, até que irrompe, por exemplo, um de seus livros? Quais as condições pré-escriturais para que sua escrita seja escrita? Quais as condições para o seu devir-outro, pensador e escrevedor, o que ocasiona uma transformação em suas sensações e intensidades, que modificam a sua identidade no pensar e no sentir, o seu estilo, a sua escrita? O Sr. se despersonaliza ao escrever, torna-se outro, por meio da escrita? Tem um estilo, vários estilos, como são eles? Possui heterônimos ou personagens conceituais? Quando escreve, o Sr., como Pessoa, também inventa alguém dentro de si que escreve? O Sr. é o verdadeiro sujeito da escrita, mas simultaneamente outro? Qual o seu estado de espírito quando pensa-escre­ve? Quais as sensações que a sua escrita lhe faz nascer?
José Gil: Bem, isso é muitíssimo complexo para mim. Eu próprio não sei resolver porque eu escrevo em francês e escrevo agora em português também. E isso é todo um problema com a língua portuguesa e com a língua francesa que eu tenho. Mas o que eu posso dizer e que pode ser interessante? Para mim é tão evidente, mas isso é um caso talvez pessoal, que quando eu escrevo, eu me des-subjetivo, como diria Foucault, é tão evidente, que eu nem penso nisso! Quer dizer, o meu eu é uma construção fragilíssima. O meu narcisismo secundário (do primário nada sei) é uma construção tipo "castelo de cartas". Eu não me reco­nheço ao espelho. Até reconheço, mas são sinais, não há contaminação com a imagem do espelho. Ora, escrever significa que não é este eu, nem nenhum eu que escreve. Não sei, acho que estou dizendo banalidades, mas acontece que não sei quem escreve, serei eu, com certeza, mas um outro eu. Eu escrevi um livro há muito tempo que era "escrito" por um mulher. Uma mulher que fala por rit­mos. Foi publicada uma parte desse livro na revista Minuit, das edições Minuit, de Jérôme Lindon. Eu tinha enviado o manuscrito a Lindon e ele telefonou-me. A primeira frase de Lindon foi: "José Gil, c'est un homme ou c'est une femme"? Bem, fica-se satisfeito, consegui alguma coisa, já que o homem não sabia se eu era um homem ou uma mulher. E depois eu tinha uma amiga que pertencia ao movimento lésbico, fortíssimamente feminina, muitíssimo inteligente, que me disse: "Olhe, eu gostei muito do seu livro. É pena ter sido escrito por um ho­mem!". Portanto, eu não sei sobre isso de heterônimos...
Educação & Realidade: Uma questão que volta um pouco para a discussão política, que talvez lhe traga recordações parisienses. Tocamos um pouco na questão política, mas queríamos explorar um pouco mais teoricamente a questão que Derrida chamaria de binarismo ou de dualismo, na obra de Deleuze junto com Guattari, que constitui uma quantidade imensa deles, que, talvez, seja uma das coleções mais extensas de toda literatura filosófica. Dá para ver Mil platôs, por exemplo, como estando todo ele organizado em torno de dualismos. Começa com árvore-rizoma, no primeiro platô e termina, lá no quatorze com a distinção entre liso e estriado, passando por mil outros. Obviamente, a questão do dualismo, a crítica do dualismo é a grande crítica tanto epistemológica quanto política, e tem implicações políticas. No caso de Deleuze, não passaria apenas pela oposi­ção, nem pela negação, nem pela dialética, que são todas recusadas, mas pela diferença mesmo. E aqui, faremos menção a uma brincadeira que um autor fran­cês, que se chama Jean-Claude Dumoncel escreveu, em um livro chamado Le pendule du Docteur Deleuze [Paris: Cahiers de l'Unebévue/E.P.E.L., 1999], quan­do ele diz: "Quando um anarqueonte como Deleuze encontra um arqueonte como Foucault, o que é que eles se falam?". Isso nos leva a comparações que o próprio Deleuze fez com Foucault, a respeito de como eles tratam a política e, sobretudo, a questão do poder. Quer dizer, repetidamente Deleuze se comparava com Foucault a esse respeito, dizendo que, enquanto para Foucault, o poder era primeiro, para ele o que era primeiro era a fuga, a desordem, o não-poder. O problema não era dos que estavam fora do poder, o problema não era a resistên­cia, mas o problema era do poder em termos de conter a fuga. Daí a quantidade de metáforas hidráulicas que Deleuze usa: vazamento, fuga, etc. Então, a nossa questão é como, na sua visão Deleuze, em Mil platôs, junto com Guattari, resol­vem essa questão dos dualismos. Se os dualismos cumprem uma função política e qual é a diferença que isso faz em termos da análise e da prática política, sugerida, por exemplo, pela teorização de Foucault?
José Gil: É uma pergunta aparentemente e não sei se realmente pertinente, tanto que muitos a fazem, que a própria Claire Parnet, já não sei em que circuns­tâncias, reenviou-a a Deleuze, dizendo: "Mas tu quiseste libertar-nos dos dualismos e encheste-nos ainda mais de dualismos!". Eu acho que há aí um mal entendido, que é o seguinte: o dualismo aparece quando os dois pólos do dualismo se situam no mesmo nível e, sobretudo, na mesma escala. Ora, aconte­ce qualquer coisa de estranho, é que realmente a apresentação dos termos duais de Deleuze, em Mil platôs, como rizoma-árvore, aparecem e apresentam-se numa escala – poderíamos empregar a palavra – macroscópica, que Deleuze e Guattari chamam de molar. Parece-me que há sempre um pólo que se opõe a uma escala molar e que está deslizando, que, de início, está na escala molar e, portanto, no mesmo nível que a árvore, o rizoma está no mesmo nível da árvore, digamos assim, quase como uma figura. Simplesmente, enquanto há um pólo, que é o pólo do pensamento, da desterritorialização, há um outro pólo que está sempre deslizando para uma escala microcóspica, molecular. E, nesse caso, desapare­cem os dualismos. Quer dizer, não há uma simetria no dualismo, portanto, não há o verdadeiro dualismo. Por que se o pensamento de Deleuze fosse um pensa­mento dualista, como parece ser, então, nós voltaríamos ao velho pensamento da tradição filosófica que ele critica! Ora, ninguém ainda fez isso, exceto, male­volamente, como Alain Badiou pretendeu fazer, malévola e falsamente. E foi um fracasso, no meu entendimento.
Educação & Realidade: Há, então, em Deleuze e Guattari, uma solução do dualismo que difere da dialética, sobretudo, e que vai nessa direção que o Sr. aponta?
José Gil: E que não é propriamente uma solução. Não é solucionável. É a entrada no movimento, que não é um movimento dialético...
Educação & Realidade: Vamos lhe fazer a última pergunta. Nós vamos abrir o Dossiê com o suposto último texto de Deleuze, "Imanência: uma vida... " Pelo menos no Brasil, este texto não foi traduzido ainda, então, o Dossiê será aberto com esse texto (bilíngüe). Parece que um texto, que é quase uma síntese do pensamento de Deleuze. E como o senhor também menciona esse texto sobretu­do naquele seu artigo [Uma reviravolta no pensamento de Deleuze. In: ALLIEZ, Eric (Org.). Gillez Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000. p. 65-83] do Colóquio de Paris, organizado por AlIiez, gostaríamos que o Sr. falasse um pouco, pessoalmente, sobre a importância e sobre o sentido desse texto tão extraordinário.
José Gil: O que eu penso desse texto? No fundo, eu penso que esse texto é o texto, talvez, vamos dizer, equivalente ao quinto livro da Ética de Spinoza. São Paulo: Abril, 1983 (Os pensadores)], na filosofia de Deleuze. Quer dizer que é aquilo que ele anuncia na primeira página do O que é a filosofia?: o acesso a uma serenidade que somente a velhice pode dar e uma extrema liberdade, que Deleuze não dá nesse livro, que ele não tem e que, possivelmente, ele não tem e não dá porque lhe aparece o Guattari. Quando ele começou sozinho a escrever O que é a filosofia?, o Guattari apareceu e Guattari era um homem de uma inteligência extraordinária, de uma agitação extraordinária, e era um outro homem. Essa é uma idéia, que pode ser falsa. Mas, em todo caso, O que é a filosofia ? não dá essa aparência de serenidade que Deleuze anuncia no princípio. Ora, lmanência: uma vida... aparece como um texto de apaziguamento, mas de apaziguamento no sentido da beatitude do quinto livro da Ética. E é precisamente essa a idéia que eu sempre tive desse texto. E é mais ou menos o que posso dizer-lhes, para não entrarmos no comentário do texto.
In: Dossiê Gilles Deleuze. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.27 n.2 p.205-224, jul./dez. 2002
sobre FRONTEIRA
por Renato Ferracini - site FUGA
Fronteira não é linha. Nem demarcação meramente espacial ou temporal entre dois pontos ou territórios. Não é uma marca de delimitação. Em realidade é também... mas não é, absolutamente, esse o sentido comum – senso comum - que interessa. Espaço-entre, In Between, MA (Tadashi Endo), Entre Mundo (Bhabha), Não-Lugar (Augé), Zona de Vizinhança, Indiferenciação ou Indiscernibilidade (Deleuze), esses são os outros nomes de fronteira que interessam, pois eles não são apenas nomes, mas estados-de-vida-emaberto- e-em-potência. Um espaço, um território de fronteira, é, por excelência, um território de devir. E devir não é evolução ou uma seta teleológica. Devir é uma Zona de Experiência, lugar-não-lugar-comum de experimentação.Um espaço-território de peste artaudiano.Fronteira é um espaço de vizinhança no qual não há síntese entre dois elementos que geram um ponto-estático que deve ser – novamente - negado para que outra síntese aconteça, mas, sim, experiências entre duas ou mais partículas ou ações ou afetos em velocidade que criam potências. É por isso que não há dialética ou evolução ou teleologia na fronteira, mas potências de multiplicidades das quais nascem turbilhões, fissuras, involuções, quebras, rizomas, potências, velocidades e até mesmo, e também, sínteses. Assim fronteira é um espaço de criação, recriação e conflitos. Território de velocidades e não de repouso.Fronteira não é um ponto, nem linha, nem demarcação, mas movimento, ação, potência, devir, velocidade.“O mais profundo é a pele”, segundo Paul Valéry. Ora o que é a pele senão a superfície corpórea? Portanto, segundo Valéry, a pele é a superfície e, portanto, o mais profundo é a superfície. Paradoxo da superfície.Paradoxo Valéry. Mas o que é a superfície ou a pele senão o próprio envoltório da fronteira? A pele é o corpo e, ao mesmo tempo, a matéria incorpórea da fronteira, pois é no território-pele que está o mais profundo da superfície, pois a pele – corpo em si paradoxal - é o território próprio da atualização - recriação em turbilhão de virtuais e atuais: movimentoação da fronteira. Esse movimento-ação gera um território-pele absolutamente dinâmico, pois ele se desterritorializa em continuum e ao mesmo tempo se reterritorializa em continuum nele mesmo, em um tempo menor do que o mínimo pensável. Por isso instável, por isso incerto, por isso indeterminado. Por isso a fronteira é lugar de conflito, pois a fronteira é sempre móvel nesse turbilhão. É na pele, nessa linha entre um possível dentro (dobra do fora) e um possível fora (desdobra e projeção do dentro), que está a fronteira. Mas a fronteira não está na pele, a fronteira é a própria pele, e é nela que essa dinâmica atualizaçãovirtualização em turbilhão espiralado - porque não circular, porque nunca atravessa o mesmo ponto - acontece. É a pele que é esse continuum de movimento de virtualização-atualização impensável, incerto, indeterminado: dinâmica de atualização que emite e absorve virtuais. É nesse território-pele que está a memória enquanto duração e acúmulo de virtuais no presente recriando-se – e portanto, atualizam-se - a cada instante. A memória se territorializa na pele, no mais profundo da pele.Pele – memória – fronteira, ou ainda Memória – fronteira – Pele, ou aindaFronteira – pele – memória.E voltando a Valery: o mais profundo é a fronteira. Assim, a fronteira não está distante: a mais longínqua fronteira é a própria superfície-território da pele. A fronteira sempre está próxima – basta ativá-la, basta transbordá-la nela mesma, pois a fronteira é o limite: além da fronteira mais fronteira, além do limite, mais limite. Fronteira é pele e nesse sentido o mais profundo é também o mais próximo, o mais superficial.Esse espaço de fronteira – território-pele - é justamente o platô no qual respiram os corpos nômades. E o corpo nômade respirando não é aquele que não possui qualquer território, mas é justamente aquele que se territorializa no próprio movimento de desterritório. O nômade é pele. A terra do corpo nômade é uma ação de potência, uma ação de possibilidades. Nesse sentido, ninguém mais aterrado que o corpo nômade, pois ele está quase sempre em velocidade, sempre em possibilidade de formação. Uma velocidade aterrada na ação de potência, aterrada na própria potência, no território de fronteira, na zona de experiência e possibilidades: velocidade aterrada - esse é o paradoxo do corpo nômade.Assim, a terra do nômade é a fronteira, mas cuidado: o nômade constrói a fronteira em sua velocidade aterrada. Na medida em que caminha, o corpo nômade potencializa a própria experiência de ser nômade, deixando atrás de si um rastro de possibilidades, um rastro de peste que pode gerar novos contágios. Um corpo nômade não descortina ou descobre fronteiras, ele as constrói em sua ação de potência e, ao mesmo tempo, a fronteira, como território de ação em desterritorialização abarca o corpo nômade. Retroalimentação. Relação de puro Espaço de Escher:qual mão desenha qual? A fronteira não pré-existe, pois ela sempre é criada e recriada. Por isso a fronteira não é somente mapa-espacial, mas abarca também relações, criações, pensamentos, e se configura como e na arte, como e na ciência, como e no espaço de possibilidades de todas as áreas, tempos e espaços.Então fica a pergunta: como construir uma fronteira na arte performática, ou mais especificamente, no corpo da arte performática? Como vimos, uma fronteira não existe na linha que delimita territórios; ela se constrói e é criada-recriada na ação de um corpo nômade que se aterra no território em ação de desterritorialização, ou seja, na potência, na Zona de Experiência. Lançar um corpo cotidiano na fronteira é, portanto, lançá-lo no nomadismo, ou seja, na ação ativa de possibilidades. Não corpos dóceis, mas corpos potentes. Não corpos passivos, mas ativos. Em trabalhos e experiências recentes realizadas por mim no LUME na possível busca de um corpo-nômade-pele, pode passar por dois elementos que se completam entre si: o paradoxo e a micropercepção. Respiremos, portanto, um pouco de paradoxos e também um pouco de micropercepções nesse espetáculo-experiência.
Dono de sua própria dança
por Soraya Belusi - 26/12/2005 - Jornal O TEMPO

O bailarino Vanilton Lakka, de Uberlândia, se destaca na pesquisa da arte em movimento e ganha APCA de melhor intérprete de 2005

Em um outdoor, localizado entre a rua Tupis e a avenida Olegário Maciel, no centro de Belo Horizonte, ele construiu uma plataforma e ligou uma esteira, onde corria uma hora por dia.
Em outro trabalho, passou um terço do tempo completamente amarrado, precisando da ajuda do público para ser "libertado". Sua mais recente investigação levou a dança para a instalação, para o mundo virtual e até para o telefone.
Essas e outras razões fizeram esse criador ser dono de sua própria dança e, assim, Vanilton Lakka, 28, não passou despercebido dentro da cena contemporânea brasileira.
Lakka foi agraciado com o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) como melhor intérprete do ano de 2005, que será entregue em abril do ano que vem.
O Magazine conversou com o bailarino natural de Uberlândia para saber um pouco mais de sua trajetória e dos caminhos que o nortearam no desenvolvimento do seu próprio conceito da arte do movimento.
Como não poderia deixar de ser, sua formação teve início com grupos do movimento de dança de rua, ainda em 1991, quando ainda era um garoto de 12 anos. Três anos depois, Lakka já via necessidade de ampliar seu campo de atuação e foi buscar a formação nas técnicas do balé clássico, jazz, moderno e dança contemporânea.
A partir de 1997, foi um dos fundadores do Grupo Werther - Pesquisa de Dança, dentro de uma proposta de criação coletiva, que contava com a participação do também bailarino de Uberlândia Wagner Schwartz.
"Nosso foco de criação foi se delineando com o tempo. Acabamos nos aproximando do cotidiano e os nossos trabalhos começaram a apresentar narrativas não lineares, constituindo pequenos núcleos de situações. Alguns críticos chegaram a sugerir que apostássemos na pantomima, mas preferimos resolver da nossa maneira. Agora, consigo visualizar um pouco o que aconteceu: paramos para perceber os movimentos do nosso corpo e compreendemos o que saía dali, em vez de pegar uma linha muito específica de pesquisa e seguir", explica Lakka, em entrevista por telefone, de Uberlândia, cidade que, mesmo com o reconhecimento nacional, ele não pretende abandonar.
Vocação para dança "Sempre falo para as pessoas que Uberlândia tem uma vocação histórica para dança. Aconteceu uma conjuntura aqui, com o Festival de Dança do Triângulo e o movimento de dança de rua, que fez alguns teóricos dizerem que a cidade virou meio um laboratório, idéias estavam e estão sendo testadas por aqui. Isso me faz prestar atenção na cidade e não querer me afastar. E quando começo a pensar no Brasil, percebo que estamos no momento da descentralização. Acho importante não estar na capital", defende Lakka, que realiza em Uberlândia, desde 2004, o projeto CirculaDança.
Foi em sua cidade natal que Vanilton Lakka recebeu o primeiro prêmio da carreira. Em 2003, com o espetáculo "Dúbbio" foi o vencedor da categoria Estímulo Dança Profissional no XVI Festival de Dança do Triângulo, sob a tutela da crítica Helena Katz e da coreógrafa Lia Rodrigues. Era ainda seu primeiro vôo solo.
"De todos os meus trabalhos, este foi o que eu mais mantive vínculo com as técnicas da dança de rua e com a coisa mais acrobática que também tinha pesquisado, unindo às improvisações de contato. Chegou num patamar em que essas informações se organizaram no corpo de tal maneira que tinha uma identidade própria", explica.
Os holofotes voltaram a se virar para ele em "De....Va..Gar: Últimos Capítulos da Cultura Nacional", em que chamou a atenção do público presente no evento "1, 2 na Dança", ao discutir questões ligadas às leis de incentivo à cultura.
Na primeira cena do espetáculo, o bailarino ficava oito minutos com o corpo todo amarrado, com o Hino Nacional de fundo musical, entrecortado com entrevistas realizadas com pessoas que se utilizaram das leis de incentivo. A segunda cena tinha o tom do samba e o público era quem o libertava daquelas amarras.
O fechamento" Apenas três minutos de movimentação no palco. No mesmo período, Lakka havia sido selecionado para ocupar a função de pesquisador/ criador/intérprete residente do Território Minas, um dos programas do Fórum Internacional de Dança (FID).
Nascia "Você, o Imóvel Corpo Acelerado", trabalho concebido a partir da discussão do conceito Mídia Corporal.
"A idéia era mesmo como fazer propaganda com o corpo. Já vinha fazendo essa investigação de como sair desse vínculo comercial e discutir a possibilidade cênica dessa história", contextualiza Lakka, também bacharel em Ciências Sociais, formação que, de uma forma ou de outra, reverbera no seu pensamento sobre o ato de dançar.
"Minha dança é intimamente ligada a uma leitura social", analisa. O FID rendeu à investigação de Lakka mais um espetáculo, "O Corpo É a Mídia da Dança", apresentado este ano e que uniu suas investigações sobre os possíveis suportes para a dança e como utilizar sua formação técnica para criar seus trabalhos.
Atualmente, o bailarino compõe como convidado o elenco de companhias respeitadas nacionalmente como o Camaleão Grupo de Dança e Mário Nascimento Cia. de Dança, com o qual dançou as coreografias "Escambo" e "Do Ritmo ao Caos". Mas a parceria não terá, ainda, ponto final.
"Fiquei três anos fazendo um trabalho solo atrás do outro. Quero trabalhar com pessoas com mais estrada e, inclusive, criadores afastados de mim fisicamente, para poder investigar as possibilidades da Internet. Quero poder participar do processo de criação dos espetáculos do Mário (Nascimento) e contribuir também para o processo. Não quero virar um especialista em solos, gosto da dança enquanto possibilidade de criação, sem qualquer limite", defende.
Festivais Só neste ano, Vanilton Lakka fez 52 apresentações, entre solos e trabalhos com outras companhias, tendo se apresentado nos principais festivais de dança contemporânea do país, como o próprio FID, o PanoramaRioArte, no Rio de Janeiro, e o Masculino na Dança, realizado em São Paulo.
No anúncio dos vencedores do APCA, Vanilton recebeu o prêmio de melhor intérprete, sem estar explicitado por qual trabalho. O bailarino acredita que o prêmio veio pelo conjunto de espetáculos apresentados, seja como criador ou intérprete, conceitos que para ele não são excludentes.
"Ser um intérprete-criador não é dançar apenas aquilo que você cria. Isso toca muito mais na possibilidade de você ter autonomia dentro da sua criação e isso se dá na cabeça e no corpo de
quem está fazendo. Não é porque o outro criou que não vou me apropriar e tratar isso como se fosse meu. A questão passa por em que medida a minha dança é minha"", questiona.
http://www.supernoticia.com.br/otempo/noticias/?IdEdicao=70&IdCanal=4&IdSubCanal=&IdNoticia=4684&IdTipoNoticia=1
As novas existências de Vera Sala
por Maíra Spanghero - 21/08/2007 -

A criadora-intérprete Vera Sala encerrou, no dia 22 de julho de 2007, a temporada de ocupação de seis semanas do nono andar do SESC Paulista, em São Paulo, com sua nova criação, a instalação coreográfica Disposições Transitórias ou Pequenas Mortes. Trata-se de uma proposta diferenciada por, no mínimo, três motivos: o modo como foi desenvolvida, o formato da obra em si e por abrir ao público uma situação de pesquisa em tempo real (na qual ele faz parte). Nesse sentido, a obra é o processo e foi justamente a ocupação desse espaço com um conjunto de idéias, com a intervenção do público e as considerações e ações que se desenrolaram dessa relação que fez a diferença. Para a realização do projeto, Vera Sala contou com Rodrigo Gontijo e Karina Montenegro (vídeos), Daniel Fagundes (instalação sonora), Hideki Matsuka (espaço cênico e iluminação) e Dora Leão (produção), além das interlocutoras Christine Greiner e Fabiana Britto. Nessa investigação, o interesse da artista, que desenvolve pesquisa na área de dança desde 1987, volta-se para a sobrevida, a potência que precede a morte. Ao entrar na sala, depois de sair do elevador, o espectador tem a sensação de que algo já estava acontecendo antes, como se não tivesse começo nem fim. Sons, luzes, espelhos, frestas, projeções e estruturas metálicas cortam o espaço, compondo assimetrias em tamanhos, volumes e velocidades. Um avião risca o céu entre os prédios. O corpo de Vera Sala está exposto, deitado e vibrando sobre cacos de vidro. Vibra, vibra, vibra até que traz à tona uma avalanche de movimentos. São micro-movimentos, quase tremores, que, de repente, provocam uma convulsão, uma espécie de terremoto em seu corpo. Um olhar mais atento percebe que os apoios são passagens de risco para as trajetórias. O visitante pode também andar pela instalação e variar seus modos de participar. Mas sua presença não passará desapercebida. Conhecer a trajetória de Vera Sala é fundamental para os interessados em arte contemporânea, especialmente em processos de pesquisa no corpo. O primeiro conjunto de suas obras está dentro do que a artista chama de teatralidade física. Aí estão incluídas Karimonai (1991), pontual por romper com os códigos de dança então presentes no corpo da criadora; Espelho d´Água (1996), importante por revelar questões que acompanham seu percurso até hoje (como o limite entre a vida e a morte) e a pesquisa apoiada pela Bolsa Vitae de Artes, Uns Entre Tantos (1997). As duas obras seguintes, Estudo para Macabéa (1998) e Corpos Ilhados (2001) foram as últimas realizadas em palco italiano. Na primeira, a criadora mergulhou no universo de Clarice Lispector, em A Hora da Estrela, para perseguir estados em seu corpo que pudessem revelar a protagonista em sua perda de limites, sua não-ação e fragilidade. Já Corpos Ilhados, que foi selecionado para a Mostra Rumos Dança Itaú Cultural, revela simultaneamente um interesse em pensar no espaço (o palco é envolvido por uma tela) e aponta para a dramaturgia que vem se desenhando nos trabalhos mais recentes. Trata-se da trilogia voltada para a investigação e o entendimento das relações corpo-ambiente. Corpo-Instalação (2003) integrou a exposição Ordenação e Vertigem (CCBB/SP) e marca a ida para um outro lugar: uma estrutura de ferro e vidro com três andares ou espécie de suporte para que o corpo não saia se debatendo. No caso de ImPermanências (2005), uma nuvem de arame confina o corpo de Vera em outras possibilidades até então não experimentadas. No fim das contas, ambas são investigações para a questão dos limites e das fronteiras: corpo/vidro, corpo/arame, artista/público, dança/instalação etc. No último da série, o Disposições Transitórias ou Pequenas Mortes, algo curioso passa a acontecer pois a fragilidade está construída junto com o ambiente, estendida nele. As passagens estão abertas e os vidros estão ora estruturados, ora despedaçados. Tudo é frágil: o que não fez-se em pedaços, pode vir a. A produção artística da criadora já recebeu inúmeros prêmios, como o da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) nas categorias criação-intérprete (2005) e pesquisa em dança (1999), o Mambembe (1998) e o do Movimentos Sesc de Dança (1989-92). O mais recente foi o PAC (Programa de Apoio a Cultura), concedido pela Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Vera Sala também foi bolsista da renomada Fundação John Simon Guggenheim Memorial Foundation com a pesquisa Os Estados do Corpo, O Corpo Como Mídia (2002/2003). Aos 55 anos, a vida dessa grande artista da dança contemporânea se divide entre a criação, a apresentação artística e o exercício de professora do curso de Comunicação das Artes do Corpo da PUC/SP, onde atua desde 1999. Do alto do nono andar do prédio na Avenida Paulista, dentro do ambiente da instalação e pouco antes de encerrar a temporada de Disposições Transitórias ou Pequenas Mortes, Vera Sala comentou, nesta entrevista exclusiva para o Idança, sua última criação e outros aspectos de sua obra e carreira. Acompanhe a seguir.Como foi a experiência com o Disposições Transitórias ou Pequenas Mortes? VS - Ela começou a ter existência aqui no SESC porque antes eu tinha pesquisado muita coisa no meu corpo mas quando esse lugar foi colocado parece que tudo o que tinha teve que desaparecer para eu poder entender de novo como é o corpo habitando esse lugar. Parece que meu corpo zerou. Eu entrei aqui e pensei ‘eu não tenho nada’. (pausa) Eu nunca tinha pensando em estar deitada em cima dos cacos. Tinha pensado em fazer um vídeo com os cacos, depois tinha pensado em trabalhar em pé, testei de sapato inclusive, até que um dia eu deitei em cima deles. Descobri isso aqui, nesse espaço. Às vezes, tenho a impressão de estar começando uma outra coisa que eu só vou entender daqui muito tempo. Estou no momento de entender que corpo é esse. É lógico que tudo que eu fiz está nele…. mas é um vazio total. É muito sofrido. Da Macabéa para cá são 10 anos. Vão 10 anos para você entender o seu percurso. Tem umas escolhas, estar nesse espaço mas eu ainda não entendi muito bem para onde isso possa ir. É um outro lugar e vai demorar uns 10 anos para eu saber onde é. (risos) A crítica de dança Helena Katz, em texto recente, usou o termo “movimentos-estilhaços” para definir o tipo de estado que emerge do seu corpo no contato com os cacos de vidro. Como é a experiência do movimento nessa pesquisa? VS - Eu conversei com a Helena sobre isso. Tem uma simultaneidade de lugares no corpo como possibilidades de trajetórias. São vários pontos no corpo que experimentam várias possibilidades de direções e aquilo fica vibrando. Depois de um tempo, alguma trajetória se completa e isso promove uma coisa violenta de modificar todo o corpo. É quadril, é ombro, é cabeça. É como se você ficasse testando e vivenciando possibilidades de trajetórias no nível micro. Você faz algum tipo de força? VS - Não. É o próprio contato com o vidro, o próprio deslizar do vidro sob meu corpo…não tem força. Às vezes, é tão micro que é pensar nas direções ósseas. Na medida que você vai organizando esse conjunto, isso te possibilita uma outra qualidade de explosão. Deflagra, de repente, um movimento grande no corpo. O corpo é lançado. Se você deixa ir, do micro para uma dimensão maior, o corpo é lançado para um outro lugar. Irrompe mesmo. Numa das apresentações, eu acabei ajoelhada sobre os cacos, acredita?Você pára quando você quer? VS - Às vezes, sim. Mas tem lugar que não dá para parar. Mas, às vezes, eu breco, sim. (pausa) É mais uma estratégia de como o corpo lida com essas questões mais gerais. O que eu estava interessada em entender ali, é que potência é essa antes da morte. Isso já tinha desde o Corpo-Instalação, com aquele corpo que batia no vidro, só que de um outro jeito. Esse interesse por aquilo que acontece antes do animal ser abatido, a potência diante do aniquilamento, vinha desde lá. E isso está no mundo, no corpo, na natureza. Essa explosão, que é quase um descontrole, um descontrole controlado. Essa força incontrolável, que vem de pequenos movimentos. Um terremoto, por exemplo, é uma força incontrolável que vem de pequenos deslizamentos, pequenos acomodamentos que num determinado momento, algo que foi um pouquinho além para lá, pronto, desmonta tudo. É também como uma tsunami, quando irrompe vem de uma maneira estrondosa… O tempo inteiro isso acontece, até em casa. Às vezes, você não empilha as coisas e elas caem? Pequenos movimentos foram acontecendo e um deflagra a modificação total. O que é esse micro que já contém essa possibilidade de explosão? Pensando em termos de dramaturgia, quais as diferenças que ocorrem, a partir de Estudo para Macabéa? VS - Estudo para Macabéa foi uma grande transição, um espaço de transição do que eu vinha trabalhando até então. Depois, Corpos Ilhados apontou uma outra direção. Macabéa foi um divisor, sintetiza coisas anteriores e abandona. O início do meu trabalho tinha algo que eu chamava de “teatralidade física” e a Macabéa começa a dissolver isso e a trazer um outro tipo de fisicalidade e outras transformações e mudanças radicais que vieram pela frente. Que tipo de mudanças? VS - Depois da Macabéa e do Corpos Ilhados (CI), começou a surgir uma outra dramaturgia que tem a ver com o que eu faço hoje, que são as instalações coreográficas. Macabéa tem uma dramaturgia, uma organização onde você acompanha um fluxo de situações que vão se modificando. Embora sem linearidade, tem a construção de uma dramaturgia de uma coisa vai para outra e para outra onde se criam diversas situações. Já Corpos Ilhados começou a apontar esse corpo que esta lá. Acho que começa ter um outro entendimento no tempo, sabe? É como se aquele corpo estivesse lá antes e depois. É uma permanência. Não tinha nenhum tipo de desfecho. O desfecho era eu quem dava simplesmente por causa de um corte. Cada situação não tinha uma resolução enquanto que na Macabéa, além de fluir de uma coisa a outra, têm pequenas resoluções. Os pedaços que compõem Corpos Ilhados, nenhum deles têm resolução. Independentemente, eles podem ficar naquele estado permanentemente. Daí eu comecei a achar que o Corpos Ilhados não fosse mais para o palco, cerquei (a cena) com uma tela e aí surgiu essa gaiola. A questão era: que espaço é esse? Depois veio Corpo-Instalação e foi quando eu saí totalmente do palco para fazer outra coisa. Então, Macabéa encerrou um tipo de dramaturgia, Corpos Ilhados encerrou outra, e depois veio a trilogia na tentativa de entender que corpo é esse, que lugar é que esse, que ambiente é esse, como esse corpo se relaciona com esse ambiente. Pensando agora no ImPermanências , que descobertas você fez nesse processo, na medida que o arame inibe umas coisas e amplia outras? VS - Além de pensar essa relação no mundo, corporalmente me trouxe uma outra possibilidade, que reaparece nos cacos, que é você entender outros espaços do seu corpo que normalmente você não usa. Que tipo de espaço? VS - Eu não gosto de falar em espaço interno do corpo mas é desde de trabalhar micro-movimentos e como é que o corpo vai se atualizando. Isso tem a ver com o que acontece no nosso dia-a-dia. Se morássemos no campo, provavelmente nosso corpo seria outro, teria outras qualidades de movimento e outras percepções, não é? Se você morasse numa selva, você teria uma acuidade para perceber animais se aproximando. Então, eu acho que essas modificações acontecem quando você entra em relação com o ambiente. Corporalmente, foi entender, por exemplo, essas pequenas modificações da massa do meu corpo, como ela se comprime em alguns lugares, como altera a morfologia do corpo, perceber o espaço entre as costelas, como uma costela se apóia na outra…parece que o corpo vai ficando enorme. Coisas mínimas começam a ter muita importância. Acompanhando sua trajetória é perceptível a investigação sobre estados corporais. Nesse percurso aparece muito a palavra transitório, provisório… O que não seria transitório nesse trajeto? Você identifica algo permanente? VS - As questões que eu trabalho, que vem desde o primeiro, as inquietações. Até por isso que eu saí de um lugar da dança, que é aquele dos códigos mais estabelecidos. Comecei com balé, fiz dança moderna, depois fiz alguns trabalhos em - eu não gosto de falar técnica contemporânea, porque isso não faz muito sentido mas… Cada técnica carrega uma visão de mundo e, às vezes, as pessoas usam sem se dar conta de que aquelas organizações já trazem as questões delas. O que eu queria discutir com o corpo era o contrário do que eu via. Me interessava mais a fragilidade, a fronteira da morte. Não é a morte como algo final, mas como uma mudança de estado. Isso ficou muito claro quando eu descobri a poeta Cecília Meireles. Eu li tudo e me deparei com o poema Os Náufragos. Ao ler esse poema, tive esse insight de como ela trabalha com a morte, como um outro estado de estar. Um outro jeito de existência. Não tem uma valoração de morte e de vida. É sempre uma passagem, uma mudança de estados. E ela vai mostrando as transformações do corpo. O que você poderia enumerar como fatos, pessoas e lugares importantes ao longo de sua carreira. Ser uma criadora-intérprete no Brasil, com todas as dificuldades, como a falta de uma política cultural, envolve um certo heroísmo… O que você poderia considerar que, de alguma forma, facilitou o seu caminho ou deu condições para você criar, ao longo de todos esses anos? VS - De espaço, foi encontrar a Ruth e o Raul (Espaço de Dança Ruth Rachou) desde 1985. Foi um lugar que abrigou vários criadores, como a Helena Bastos. Depois começam a surgir parcerias e coisas que frutificaram a partir da co-existência nesse espaço de trabalho, como a direção do trabalho da Helena e do Raul. Ter um espaço foi fundamental para continuar pesquisando continuamente. Além disso, todas as discussões do Centro de Estudos do Corpo, coordenado pela Helena Katz, entre idas e vindas, eu estava em contato com o pensamento desse grupo, que, com certeza, modificou o meu de maneira significativa. As pessoas com quem eu trabalhei também foram importantes, desde o Janô (Antônio Januzelli), meu primeiro parceiro. Depois trabalhei com a Regina Mendes, com o Fernando Mencarelli, o Paulinho de Moraes, a Rosa Hércoles, e agora estou numa fase em que estou sozinha de novo. Todas essas parcerias modificaram meu olhar. (pausa) É triste eu não poder dizer que tem uma política pública. Outra coisa importante foi a Bolsa Vitae e depois a Bolsa da Fundação Guggenheim, em 2003. São pequenas ilhas, pequenos oásis numa coisa muito árida. Agora, em 2007, o PAC de pesquisa. Eu não sei como a gente sobrevive. Também dou aula, mas estou questionando o que é ser professor. Eu gosto de dar aula e até certo ponto é bom, porque você re-elabora suas coisas. Mas depois de um determinado momento, você virar professor, mata o artista. No ano passado e neste, trabalhei bastante e até conseguiria sobreviver só do meu trabalho artístico. Mas isso a gente sabe que é cíclico. E tem horas que você precisa se recolher. Ficar quieta. Recentemente você teve duas experiências de direção. A primeira com o espetáculo Fleuma, de uma turma de formandos do curso de Comunicação em Artes do Corpo, em 2005, e agora com a direção do excelente Vapor, de Helena Bastos e Raul Rachou, ganhadores do último Rumos Dança Itaú Cultural. Você poderia comentar essas duas experiências? VS - Eu vinha trabalhando no mesmo espaço que a Heleninha e o Raul. Fazia tempo que conversávamos e víamos o ensaio um do outro. Eu acompanhava o trabalho deles, pela proximidade do espaço físico. Pensando em nossos trabalhos, temos jeitos muito diferentes de organizar o material. A Heleninha organiza colocando uma coisa depois da outra. Eu verticalizo. E foi isso o que eu fiz. Sugeri pegar um elemento e verticalizá-lo. Durante o processo, eu acompanhei os ensaios, propus coisas e eles trabalharam. Construímos conjuntamente uma dramaturgia. Não foi uma direção, eu propus outro jeito de organizar o movimento. Foi muito legal, foi um diálogo permanente. Meu papel foi o de trazer um outro jeito de pensar a construção do trabalho. Já a experiência com a turma de Artes do Corpo foi a coordenação de um processo, onde os alunos traziam coisas que eles queriam trabalhar e o meu papel era traçar estratégias de como construir no corpo o que existia enquanto idéia. Eles liam livros, viam filmes, buscavam referências que os interessavam e o que eu tinha que trabalhar era como fisicalizar coisas dispersas. Neste construir no corpo, surgem outras sínteses e questões. Eu ajudei nesse reconhecimento e nas estratégias para potencializar a questões que iam surgindo. Gostaria de encerrar pedindo que você comentasse um pouco mais a respeito do Disposições Transitórias… Além, obviamente, de envolver a criação, nesse caso tem um diferencial pelo processo estar aberto ao público, duas vezes por semana. Também houve encontros abertos com pesquisadores de dança e você contou também com colaboradores valiosos para o vídeo, a trilha sonora, o ambiente… Foi a primeira vez que isso aconteceu na criação de uma obra sua? Qual a importância desse tipo de formato para essa criação? VS - Foi fundamental estar lá. Porque é um espaço diferenciado, não tem palco. Tudo o que eu vinha pesquisando antes teve que se reorganizar completamente. Tem as questões de espacialidade que surgiram. É um espaço que precisa ser habitado. Trabalhar com outras pessoas também tem sido importante. Isso possibilitou ter uma outra cara. Esse espaço tem uma possibilidade enorme para o SESC ter uma outra relação com os artistas e apostar nisso foi muito legal. Houve verba de produção para todo o material. Foi um diferencial e espero que eles continuem apostando nesse tipo de ocupação inédita. É um pequeno oásis. Sobre a equipe, com o Daniel, no início, tinha um tipo de som, agora tem outro. Tem hora que ele abre a janela para entrar o som de fora. Foi muito especial. Não foi uma equipe para executar e pronto. Eles foram se motivando nesse fazer. É pouco tempo para reconhecer outras coisas e esse trabalho vai depender muito de cada possibilidade de montagem. Não tem uma cara fixa. Outra coisa é que a idéia de processo continuado está mais escancarada. Estar nesse local, na Avenida Paulista, com a cidade ao fundo, o vidro separando o que está fora…isso re-significa tudo. Fazer em outro espaço, fico pensando o que vai ser desse trabalho? Cada vez tenho que pensar uma outra coisa. No ImPermanências eu sabia como ia ser. Esse trabalho não sei. (pausa) Talvez a arte contemporânea só possa existir no questionamento dela própria.