30 setembro 2008

todo corpo é corpo mídia
por Helena Katz
Tudo o que surge no mundo, luta para nele permanecer, e o sucesso nessa empreitada depende da capacidade de produzir continuidade. Imerso na atividades de garantir a sua sobrevivência, o corpo humano, uma mistura de determinismos e aleatoriedades, não pode ser concebido fora do tempo, como se fosse algo em si mesmo. Quando James Watson e Francis Crick descobriram, em 1953, a estrutura em dupla hélice do DNA, nos ensinaram que o mistério da vida era habitado por reações químicas. No entanto, a existência dos pares das moléculas adenina-timina e citosina-guanina não soterrou as pseudoexplicações a respeito da vida que não levam em conta a química que regula o corpo.
O desejo de permanecer leva à necessidade de fazer outro a partir de si mesmo, e só pode se realizar porque no mundo onde vivemos, as informações tendem a operar dentro de um processo permanente de comunicação. As informações encostam-se, umas nas outras, e assim se modificam e também ao meio onde estão. Vale destacar a singularidade desse processo, pois transforma todos os nele envolvidos, seja a própria informação, o corpo onde ela encostou e do qual passou a fazer parte, as outras informações que constituíam o corpo até o momento específico do contato com a nova informação, e também o ambiente onde esse corpo (agora transformado) continua a atuar. E, estando já transformado, tende a se relacionar com a nova coleção de informações que passou a o constituir. Então, também altera o seu relacionamento com o ambiente, transformando-o. Contágios simultâneos em todas as direções, agindo em tempo real.
Caso a vida funcione, de fato, em uma estrutura como essa, com o passar do tempo, as trocas permanentes tenderiam, quase como uma conseqüência natural, a borrar os limites de todos os participantes do fluxo, produzindo, então, uma plasticidade não congelada de suas fronteiras. O fato dos territórios epistemológicos estarem muito mais móveis hoje, tanto na ciência quanto na arte, não passa, portanto, de um traço evolutivo.
Os modos de armazenar, tansmitir e interpretar informação não param de se transformar, e a vida torna-se cada vez mais complexa. A certa altura, os processos evolutivos produziram o corpo humano para que a evolução pudesse continuar a se processar. Desde então, esse corpo vem mudando, pois resulta da coleção de informações que o constituem a cada momento. Se as trocas não estancam, pois pertencem ao fluxo permanente, cada corpo está sempre sendo um corpo processual e em co-dependência com as trocas que realiza com os outros corpos e com o ambiente. Por isso, pode-se pensar o corpo como sendo sempre um resultado provisório de acordos contínuos entre os mecanismos que promovem as trocas de informação.
A compreensão da vida como produto e produtora de um mundo em rede dessa natureza marca uma diferença básica. E nela, a hipótese de que os corpos são sempre corposmídia de si mesmos ocupa uma posição central.
Há um fluxo de transformação inestancável e permanente em curso na vida, e ele se chama evolução. Não é direcional e tampouco cumulativo (o que o impede de ser associado à noção de progresso) e apoia-se no movimento para promover as suas ações. O movimento, presente como padrão já no embrião, precisa da relação com o espaço para acontecer como movimento, para se atualizar. Ou seja, é o movimento quem favorece a existência da comunicação.
A noção do corpo como uma construção onde discurso e poder se inscrevem tornou-se moeda forte depois de Foucault. Tratar o corpo como corpomídia tem conseqüências políticas. E a primeira delas pode ser identificada na proposta que tal entendimento de corpo traz: o corpo não é, o corpo está. Não se trata de uma substituição meramente retórica de verbos. A troca do verbo ser pelo verbo estar instaura a transitividade no lugar anteriormente ocupado pela noção de identidade.
A proposta de que todo corpo é corpomídia de si mesmo, isto é, um corpomídia do estado momentâneo da coleção de informações que o constitui, mexe também com o entendimento habitual de mídia. Aqui, mídia não é tratada como sendo um meio de transmissão. Na mídia que o corpomídia emprega, a informação fica no corpo, se torna corpo.
Não se trata da noção de corpo-máquina, onde adentra uma informação que estava fora (no ambiente), a máquina processa e, em seguida, a devolve ao ambiente, em uma seqüência fora-dentro-fora. Ou seja, a teoria corpomídia rejeita o modelo computacional de comunicação.
A mídia do corpomídia, então, identifica um estado do corpo. O corpo é mídia desse seu estado, por isso é sempre mídia de si mesmo, de cada momento dos seus estados. Porque um corpo sempre mostra a si mesmo, o que equivale dizer que ele sempre se apresenta com a coleção de informações que o constituem naquele exato momento.
Por isso, o corpo não é, o corpo está sendo corpo. Melhor dizendo, está sempre sendo corpomídia da evolução.
Helena Katz é professora no programa de pós-graduação em comunicação e semiótica, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Bibliografia:
Durham, W.H. (1991). Coevolution: Genes, Culture and Human Diversity. Stanford: Stanford University Press, 1991.
Foley, Robert (2003). Os Humanos Antes da Humanidade. Uma Perspectiva Evolucionista. São Paulo: Editora Unesp.
Foucault, Michel (2002, 1971). A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola.
Katz, Helena (2005). Um, dois, Três. A Dança é o Pensamento do Corpo. Belo horizonte: FID Editorial.
Mattelard, A. (1997,1994). L‚ invention de la communication. Paris: Edition de la Découverte.Margulis, Lynn (1998, 2001). O Planeta Simbiótico. Rio de Janeiro: Editora Rocco.

28 setembro 2008

Corpografias Urbanas
Paola Berenstein
A cidade é lida pelo corpo como conjunto de condições interativas e o corpo expressa a síntese dessa interação descrevendo em sua corporalidade, o que passamos a chamar de corpografia urbana. A corpografia é uma cartografia corporal (ou corpo-cartografia, daí corpografia), ou seja, parte da hipótese de que a experiência urbana fica inscrita, em diversas escalas de temporalidade, no próprio corpo daquele que a experimenta, e dessa forma também o define, mesmo que involuntariamente (o que pode ser determinante nas cartografias de coreografias ou carto-coreografias7). Faz-se importante então diferenciar cartografia, coreografia e corpografia. A começar pela diferenciação de cartografia do projeto urbano e a partir daí a corpografia tanto da cartografia quanto da coreografia. Uma cartografia já é um tipo de atualização do projeto urbano, ou seja, uma cartografia urbana descreve um mapa da cidade construída e assim muitas vezes já apropriada e modificada por seus usuários. Uma coreografia pode ser vista como um projeto de movimentação corporal, ou seja, um projeto para o corpo (ou conjunto de corpos) realizar, o que implica, como no projeto urbano, em desenho (ou notação), composição (ou roteiro) etc. No momento da realização de uma coreografia, da mesma forma como ocorre com a apropriação do
espaço urbano que difere do que foi projetado, os corpos dos bailarinos também atualizam o projeto, ou seja, realizam o que poderíamos chamar de uma cartografia da coreografia, ao executarem a dança.
Uma corpografia não se confunde, então, nem com a cartografia nem com a coreografia, e também não seria nem a cartografia da coreografia (ou carto-coreografia que expressa a dança realizada) nem a coreografia da cartografia (ou coreo-cartografia, a idéia de um projeto de dança criado a partir de uma pré-existência espacial). Cada corpo pode acumular diferentes corpografias, resultados das mais diferentes experiências urbanas vividas por cada um. A questão da temporalidade e da intensidade dessas experiências é determinante na sua forma de inscrição.