12 novembro 2012

Entrevista com Gilles Lipovetsky


O que é a felicidade? Para Gilles Lipovetsky, a sociedade contemporânea construiu uma nova percepção sobre o papel da felicidade na vida dos indivíduos. O seu significado passou a estar relacionado com a busca permanente de realização pessoal. Para o filósofo francês, as imagens de alegria e prazer reproduzidas pela publicidade e pelo cinema alimentam a ilusão de que é possível ser feliz o tempo inteiro. E foi essa busca permanente pela felicidade que tornou o consumo um elemento central da nossa sociedade, pois possibilita momentos de satisfação. “Esses pequenos prazeres vêm preencher uma necessidade muito maior de realização pessoal,” afirma.
Em entrevista ao Globo Universidade, Gilles Lipovetsky nos convida a pensar sobre essas questões e analisa temas presentes na sociedade contemporânea, como a moda e o luxo. Professor de Filosofia da Universidade de Grenoble (França), formou-se em Filosofia pela Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), tem livros e artigos publicados em diversos países, como “Os Tempos Hipermodernos”, “O Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas”, “O Luxo Eterno: da Idade do Sagrado ao Tempo das Marcas” e ” Cultura Mundo”.

Globo Universidade - Você poderia falar um pouco mais sobre a sua carreira acadêmica?
Gilles Lipovetsky - Eu tive uma carreira completamente tradicional. Em maio de 68, eu ainda era estudante de filosofia em Paris. Depois, me tornei professor de filosofia e permaneci professor toda a minha vida. Mas, paralelamente ao ensino, eu gostava de interpretar o mundo, por isso escrevia artigos, que se tornaram, posteriormente, livros. Portanto, eu sempre tive duas atividades, a de professor e a de escritor.

Há quinze anos, fui nomeado para fazer parte de um órgão público junto ao Primeiro-Ministro da França que fez com que eu não tivesse mais obrigações como professor. Mas, continuei o meu trabalho como escritor.

E o que é mais interessante é que eu tive uma formação de filósofo, mas ao mesmo tempo uma sensibilidade um pouco mais sociológica do que filosófica, o que deu uma mistura de filosofia com sociologia. Ser filósofo é muito mais abstrato e eu gosto de partir das coisas concretas da vida. Eu amo a observação, mas a observação não é suficiente para mim. Por isso, eu tento extrair um sentido do que eu observo. E esse não é um hábito filosófico uma vez que não parte da observação dos fatos.
 
GU - Você poderia nos contar brevemente a sua experiência no Maio de 1968?
GL - Eu era estudante e participei dos eventos de Maio de 1968, mas não de uma forma apaixonada, pois não acreditava na revolução. Por isso, era mais um observador do que um ator. E o choque de Maio de 68 teve mais repercussão depois, na década de 1970, quando as suas consequências foram percebidas. Eu analisei um pouco essas consequências no meu primeiro livro, "L’ere du vide. Essais sur Le individualisme contemporain", que mostra as mudanças nos comportamentos, na vida familiar, na sexualidade. Foi o impacto do espírito contestador que se refletiu na vida cotidiana e que a modificou bastante, foi uma mudança de uma sociedade conformista para uma sociedade muito mais livre.
 
GU - Em sua opinião, por que os indivíduos da sociedade contemporânea têm a necessidade de estar sempre em mudança, de sempre consumir produtos novos e eliminar os antigos? Por que as pessoas nunca sentem que suas necessidades foram preenchidas?
GL - Primeiramente, porque nós não estamos mais em uma sociedade baseada na tradição, de modo que não há mais nada que legitime a repetição. Em segundo lugar porque a mudança se tornou excitante e nos dá uma sensação de prazer, além de ser legítima e sem interdições. Os indivíduos buscam reverter suas insatisfações e tristezas por meio dessa busca por novidades e essa necessidade se tornou fundamental. Atualmente não podemos mais viver como no passado, dentro de uma mesma cidade, de um mesmo trabalho, com um mesmo marido ou mulher. Antes tudo era igual, hoje isso se tornou irrespirável para nós. Todos nós procuramos a felicidade, mas não a temos sempre. Como fazer nesse caso? Antigamente, as pessoas aceitavam esse fato, hoje, não. Então, nós tentamos, fazemos muitas coisas em direção a esse fim. Se estamos deprimidos, procuramos fazer uma viagem ou vamos ao shopping. Pensamos: “Talvez isso me fará bem” Esses são pequenos prazeres que certamente vêm preencher uma necessidade muito maior de realização pessoal.
Mas, essa realização pessoal, bem, nós não a encontramos sempre... No amor, é complicado... No trabalho, nem sempre estamos satisfeitos. Finalmente, as pessoas se olham e constatam: “Bom, não estou muito feliz com a minha vida, ela não é formidável. Meu marido me entedia, meu chefe me entedia também, meus filhos estão com problemas na escola... O que fazer?”
O que sobra são os pequenos prazeres trazidos pelo consumo. Assim, pode-se dizer que são mudanças no consumo. Mesmo assim, essas pequenas coisas nos trazem um pouco de agitação, de animação na vida que acabam dando um sentimento de que as coisas não se repetem, apesar de tudo. Mudamos coisas na nossa casa, compramos novos produtos, um carro novo, um perfume. São pequenos elementos que nos dão momentos de pequeno prazer e que vêm, sem dúvida, substituir uma procura muito mais intensa de satisfação profunda. Mas essa satisfação profunda, nós não a temos sempre. Temos momentos de grande satisfação, mas que são raros. Não podemos viver um amor total ou em um emprego que nos agrada totalmente. Isso é muito bom no cinema, mas, bem, na realidade é diferente. É possível em pequenos momentos quando vivemos momentos magníficos, mas que são curtos. Na vida, sobram os pequenos prazeres que vêm preencher a necessidade de uma grande felicidade.
GU - Em sua opinião, por que nossa sociedade está sempre em busca de um modelo de felicidade ideal que dificilmente será alcançado?
GL - A felicidade pode ser alcançada em pequenos momentos da vida. Não podemos estar felizes o tempo inteiro, até porque dependemos dos outros para isso. Nós sofremos, por exemplo, porque a pessoa por quem estamos apaixonada olha para outra pessoa, porque nossos filhos nos trazem problemas, porque nosso chefe é cruel. Nós não podemos fazer nada quanto a isso, são questões que vêm do exterior. Nós não podemos controlar a felicidade, porque não temos como controlar os outros. Controlamos alguns aspectos, mas nem tudo! A felicidade, muitas vezes, nos escapa. Se perdermos alguém que amamos, como fazemos? São momentos que fazem parte da vida e que são impossíveis de eliminar.
O sofrimento faz parte da vida e não pode ser ignorado. O problema é que hoje o sofrimento não tem mais sentido, não existe mais razão para isso. Antes, havia um sistema, como a religião, que dava sentido ao sofrimento, mas hoje é sempre visto como um mal. Apesar de a modernidade ter facilitado alguns aspectos da vida, diminuindo essa percepção, também trouxe muitas dificuldades.
Atualmente, podemos observar uma espiral da taxa de depressão entre as pessoas. Existem duas razões para isso. Primeiramente, a sociedade se tornou muito mais incerta, temos menos repetição, tudo muda o tempo inteiro, temos mais competição de forma que as pessoas ficam mais desestabilizadas. Além disso, não estamos mais habituados a suportar momentos difíceis. Quando não estamos felizes, achamos que existe algo de errado com a gente, pois vivemos em uma sociedade publicitária que nos mostra por meio das propagandas, das celebridades e do cinema imagens de felicidade.
Hoje, por exemplo, as crianças são criadas para não sofrer. Antigamente, elas eram criadas de uma forma mais dura para a sua própria proteção, para que elas se tornassem mais resistentes. Hoje, os jovens se tornaram mais frágeis e o aumento das taxas de suicídio reflete um pouco isso. Os indivíduos contemporâneos são criados para serem felizes. Não podemos mais sofrer.
 
GU - Quais são as vantagens e as desvantagens dessa sociedade hipermoderna baseada no consumo excessivo?
GL - As vantagens é que hoje vivemos muito mais tempo e com muito mais saúde. Além disso, o consumo oferece uma abertura do mundo, possibilitando que as pessoas viajem mais e vejam coisas que jamais viram. Graças à internet, as pessoas podem conhecer mais o mundo. Paralelamente, em uma sociedade onde há um forte consumo generalizado, a violência, mais especificamente, a violência política tende a diminuir de forma que o consumo pacifica o espaço público. E isso é um grande benefício.
Já os inconvenientes é que, para muita gente, a vida se tornou caótica. Busca-se o tempo todo coisas novas que, ao final, não dão satisfação. Cada vez temos mais coisas, mas o que não significa que estamos mais felizes. Temos mais música, filmes, viagens, mas as pessoas estão mais felizes? Imagino que não.
 
GU - O que é a hipermodernidade? Como você desenvolveu o conceito?
GL - Como desenvolvo o conceito no meu livro “Os Tempos Hipermodernos”, a definição é um pouco longa. Mas, em resumo, é a ideia de que a modernidade não possui mais alternativa. A modernidade baseada na democracia e no mercado não têm mais um contra-modelo. Antigamente sim, a modernidade se construiu contra a tradição e, ao mesmo tempo, a modernidade criou sua própria auto-crítica interna. Falava-se que a democracia seria substituída pelo socialismo e que o mercado seria substituído pelo comunismo. Atualmente, ninguém mais pensa em substituir a democracia. Criticamos o mercado, o capitalismo, mas o que colocaremos no lugar? Não há nada.

GU - Quais são os pensadores e as experiências pessoais que o influenciaram durante o processo de construção do conceito de hipermodernidade?
GL - A transformação do capitalismo, o fenômeno da globalização e o fim das grandes paixões políticas. Durante dois séculos, a democracia suscitou paixões políticas muito fortes que, atualmente, desapareceram. As grandes paixões das pessoas são as amorosas e consumistas. A política ainda é importante, mas não possui mais uma representação forte na vida dos indivíduos. Assim, essa é uma nova face da modernidade que começa. Na modernidade clássica, a política era central, a política e o Estado prometiam mudar o mundo. Hoje, se um político diz que vai mudar a vida das pessoas, todo mundo vai rir. Ninguém acreditará nele, porque atualmente o que muda a vida é o capitalismo. É no nível individual que a mudança acontece. A política muda poucas coisas e as pessoas não acreditam mais e não querem uma revolução.
Atualmente, cada um procura as suas próprias soluções. E não é necessariamente negativo que hoje haja armas pessoais que nos possibilite fazer projetos e realizar várias coisas. Isso é muito dinâmico. O problema é que muitos não as têm. Essas pessoas sofrem com o desemprego, a pobreza, mas elas não possuem recursos para construir sua própria vida. Então, temos uma contradição, porque na sociedade moderna, cada indivíduo é responsável pela sua vida, mas essas pessoas não possuem meios para mudar a vida delas. Antigamente, não havia essa contradição, pois se acreditava que era o destino. Atualmente, somos nós que construímos nosso destino, mas quando eu não tenho mais trabalho, quando eu sou jovem, o que eu posso fazer? É uma contradição terrível.
 
GU - Ao mesmo tempo, o consumo de produtos de luxo aumentou consideravelmente nos últimos anos. Por que o luxo encanta as pessoas?
GL - Porque o luxo oferece um universo de beleza e de qualidade. O luxo é um fenômeno que traduz um desejo de qualidade de vida e de consumo de produtos com mais estilo e beleza e não necessariamente voltados para a sobrevivência. O crescimento desse consumo mais estético significa que a maioria das pessoas procura uma experiência. As pessoas, por exemplo, não querem só comer, elas querem ir a um restaurante. As pessoas não vão mais a um hotel somente para dormir, elas vão a um hotel que deixe lembranças, pela sua beleza e originalidade. Acho que isso vai se traduzir em um novo tipo de consumidor mais estético que busca no consumo as emoções. Assim, é uma procura pelo prazer, mas um prazer refinado, estético e que ganha cada vez mais uma fração maior da sociedade. As mulheres, atualmente, querem perfumes, cosméticos, todas querem. Todos desejam viajar, ficar em bons hotéis e ir a bons restaurantes. É uma promessa de felicidade. São coisas que nos trazem experiências e que nos fazem viver de uma maneira muito mais intensa.
 
GU - Recentemente, os problemas ambientais influenciaram uma nova forma de consumo baseado no discurso da sustentabilidade. A partir do seu conceito de hipermodernidade, como o senhor compreende esse fenômeno?
GL - Sim, é um novo fenômeno de consumo, consumo de produtos verdes e orgânicos. Quando perguntamos para as pessoas, todas dizem que são favoráveis. O problema é que estes produtos ainda são caros. Mas, de fato, pode-se dizer que há uma certa consciência das pessoas sobre a fragilidade do planeta, mas que, na realidade, ainda representa pouca coisa.
Mesmo assim, isso se traduz em um novo tipo de consumidor, pois, apesar desses tipos de produtos estarem na moda, o seu consumo representa o prazer e, ao mesmo tempo, a responsabilidade com o meio ambiente. Há uma mistura dessas duas coisas. Antigamente, a moda não se preocupava com questões ambientais e com a preocupação com a responsabilidade na hora de consumir. Atualmente, há uma responsabilidade social e ecológica.
 
GU - Em seus livros, você também comenta sobre a emergência de um capitalismo cultural. Nesse sentido, o que o turismo representa para o capitalismo?
GL - O turismo se traduz em um consumo mais estético que procura novas experiências e sensações. O turismo é a procura por novas sensações, novas paisagens, novas descobertas. E esse fenômeno não vai parar. Antigamente, as pessoas, nas férias, iam sempre com sua família para o interior. Hoje, elas querem visitar novos lugares, há uma necessidade de sair do cotidiano. Podemos dizer que há uma democratização pelo gosto estético, pelo consumo de coisas somente pelo prazer. Pode-se dizer que há dois tipos de turismo. Um turismo mais conformista que são as viagens organizadas. Como a maioria das pessoas não passa um tempo infinito nos lugares, elas querem conhecer os pontos turísticos mais célebres. Em Paris todos querem conhecer o Louvre, a Torre Eiffel. Mas há também um turismo menos ortodoxo, pessoas que constroem suas próprias viagens e que usam a internet para isso.
Então, é possível ver essa tendência estética, pessoas que consomem somente para o seu prazer. O turismo oferece uma experiência completamente desconectada do cotidiano e da rotina. Quando você é um turista, é como se você estivesse dentro de um filme. É uma possibilidade de sair da vida real. É um tipo de consumo voltado unicamente para o prazer.

Fonte: http://redeglobo.globo.com/globouniversidade/noticia/2012/10/entrevista-gilles-lipovetsky-aborda-o-papel-do-consumo-na-atualidade.html

Os Tempos Hipermodernos, Download:
http://www.4shared.com/office/7-1v13I5/os_tempos_hipermodernos.html