Entrevista com Gilles Lipovetsky
O que é a felicidade? Para Gilles Lipovetsky, a sociedade contemporânea
construiu uma nova percepção sobre o papel da felicidade na vida dos
indivíduos. O seu significado passou a estar relacionado com a busca
permanente de realização pessoal. Para o filósofo francês, as imagens de
alegria e prazer reproduzidas pela publicidade e pelo cinema alimentam a
ilusão de que é possível ser feliz o tempo inteiro. E foi essa busca
permanente pela felicidade que tornou o consumo um elemento central da
nossa sociedade, pois possibilita momentos de satisfação. “Esses
pequenos prazeres vêm preencher uma necessidade muito maior de
realização pessoal,” afirma.
Em entrevista ao Globo Universidade,
Gilles Lipovetsky nos convida a pensar sobre essas questões e analisa
temas presentes na sociedade contemporânea, como a moda e o luxo.
Professor de Filosofia da Universidade de Grenoble (França), formou-se
em Filosofia pela Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), tem livros e
artigos publicados em diversos países, como “Os Tempos Hipermodernos”,
“O Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas”, “O
Luxo Eterno: da Idade do Sagrado ao Tempo das Marcas” e ” Cultura
Mundo”.
Globo Universidade - Você poderia falar um pouco mais sobre a sua carreira acadêmica?
Gilles Lipovetsky -
Eu tive uma carreira completamente tradicional. Em maio de 68, eu ainda
era estudante de filosofia em Paris. Depois, me tornei professor de
filosofia e permaneci professor toda a minha vida. Mas, paralelamente ao
ensino, eu gostava de interpretar o mundo, por isso escrevia artigos,
que se tornaram, posteriormente, livros. Portanto, eu sempre tive duas
atividades, a de professor e a de escritor.
Há quinze anos, fui nomeado para fazer parte de um órgão público junto
ao Primeiro-Ministro da França que fez com que eu não tivesse mais
obrigações como professor. Mas, continuei o meu trabalho como escritor.
E o que é mais interessante é que eu tive uma formação de filósofo, mas
ao mesmo tempo uma sensibilidade um pouco mais sociológica do que
filosófica, o que deu uma mistura de filosofia com sociologia. Ser
filósofo é muito mais abstrato e eu gosto de partir das coisas concretas
da vida. Eu amo a observação, mas a observação não é suficiente para
mim. Por isso, eu tento extrair um sentido do que eu observo. E esse não
é um hábito filosófico uma vez que não parte da observação dos fatos.
GU - Você poderia nos contar brevemente a sua experiência no Maio de 1968?
GL - Eu
era estudante e participei dos eventos de Maio de 1968, mas não de uma
forma apaixonada, pois não acreditava na revolução. Por isso, era mais
um observador do que um ator. E o choque de Maio de 68 teve mais
repercussão depois, na década de 1970, quando as suas consequências
foram percebidas. Eu analisei um pouco essas consequências no meu
primeiro livro, "L’ere du vide. Essais sur Le individualisme
contemporain", que mostra as mudanças nos comportamentos, na vida
familiar, na sexualidade. Foi o impacto do espírito contestador que se
refletiu na vida cotidiana e que a modificou bastante, foi uma mudança
de uma sociedade conformista para uma sociedade muito mais livre.
GU - Em sua opinião, por que os indivíduos da sociedade
contemporânea têm a necessidade de estar sempre em mudança, de sempre
consumir produtos novos e eliminar os antigos? Por que as pessoas nunca
sentem que suas necessidades foram preenchidas?
GL -
Primeiramente, porque nós não estamos mais em uma sociedade baseada na
tradição, de modo que não há mais nada que legitime a repetição. Em
segundo lugar porque a mudança se tornou excitante e nos dá uma sensação
de prazer, além de ser legítima e sem interdições. Os indivíduos buscam
reverter suas insatisfações e tristezas por meio dessa busca por
novidades e essa necessidade se tornou fundamental. Atualmente não
podemos mais viver como no passado, dentro de uma mesma cidade, de um
mesmo trabalho, com um mesmo marido ou mulher. Antes tudo era igual,
hoje isso se tornou irrespirável para nós. Todos nós procuramos a
felicidade, mas não a temos sempre. Como fazer nesse caso? Antigamente,
as pessoas aceitavam esse fato, hoje, não. Então, nós tentamos, fazemos
muitas coisas em direção a esse fim. Se estamos deprimidos, procuramos
fazer uma viagem ou vamos ao shopping. Pensamos: “Talvez isso me fará
bem” Esses são pequenos prazeres que certamente vêm preencher uma
necessidade muito maior de realização pessoal.
Mas, essa realização pessoal, bem, nós não a encontramos sempre... No
amor, é complicado... No trabalho, nem sempre estamos satisfeitos.
Finalmente, as pessoas se olham e constatam: “Bom, não estou muito feliz
com a minha vida, ela não é formidável. Meu marido me entedia, meu
chefe me entedia também, meus filhos estão com problemas na escola... O
que fazer?”
O que sobra são os pequenos prazeres trazidos pelo consumo. Assim,
pode-se dizer que são mudanças no consumo. Mesmo assim, essas pequenas
coisas nos trazem um pouco de agitação, de animação na vida que acabam
dando um sentimento de que as coisas não se repetem, apesar de tudo.
Mudamos coisas na nossa casa, compramos novos produtos, um carro novo,
um perfume. São pequenos elementos que nos dão momentos de pequeno
prazer e que vêm, sem dúvida, substituir uma procura muito mais intensa
de satisfação profunda. Mas essa satisfação profunda, nós não a temos
sempre. Temos momentos de grande satisfação, mas que são raros. Não
podemos viver um amor total ou em um emprego que nos agrada totalmente.
Isso é muito bom no cinema, mas, bem, na realidade é diferente. É
possível em pequenos momentos quando vivemos momentos magníficos, mas
que são curtos. Na vida, sobram os pequenos prazeres que vêm preencher a
necessidade de uma grande felicidade.
GU - Em sua opinião, por que nossa sociedade está sempre em
busca de um modelo de felicidade ideal que dificilmente será alcançado?
GL -
A felicidade pode ser alcançada em pequenos momentos da vida. Não
podemos estar felizes o tempo inteiro, até porque dependemos dos outros
para isso. Nós sofremos, por exemplo, porque a pessoa por quem estamos
apaixonada olha para outra pessoa, porque nossos filhos nos trazem
problemas, porque nosso chefe é cruel. Nós não podemos fazer nada quanto
a isso, são questões que vêm do exterior. Nós não podemos controlar a
felicidade, porque não temos como controlar os outros. Controlamos
alguns aspectos, mas nem tudo! A felicidade, muitas vezes, nos escapa.
Se perdermos alguém que amamos, como fazemos? São momentos que fazem
parte da vida e que são impossíveis de eliminar.
O sofrimento faz parte da vida e não pode ser ignorado. O problema é
que hoje o sofrimento não tem mais sentido, não existe mais razão para
isso. Antes, havia um sistema, como a religião, que dava sentido ao
sofrimento, mas hoje é sempre visto como um mal. Apesar de a modernidade
ter facilitado alguns aspectos da vida, diminuindo essa percepção,
também trouxe muitas dificuldades.
Atualmente, podemos observar uma espiral da taxa de depressão entre as
pessoas. Existem duas razões para isso. Primeiramente, a sociedade se
tornou muito mais incerta, temos menos repetição, tudo muda o tempo
inteiro, temos mais competição de forma que as pessoas ficam mais
desestabilizadas. Além disso, não estamos mais habituados a suportar
momentos difíceis. Quando não estamos felizes, achamos que existe algo
de errado com a gente, pois vivemos em uma sociedade publicitária que
nos mostra por meio das propagandas, das celebridades e do cinema
imagens de felicidade.
Hoje, por exemplo, as crianças são criadas para não sofrer.
Antigamente, elas eram criadas de uma forma mais dura para a sua própria
proteção, para que elas se tornassem mais resistentes. Hoje, os jovens
se tornaram mais frágeis e o aumento das taxas de suicídio reflete um
pouco isso. Os indivíduos contemporâneos são criados para serem felizes.
Não podemos mais sofrer.
GU - Quais são as vantagens e as desvantagens dessa sociedade hipermoderna baseada no consumo excessivo?
GL - As
vantagens é que hoje vivemos muito mais tempo e com muito mais saúde.
Além disso, o consumo oferece uma abertura do mundo, possibilitando que
as pessoas viajem mais e vejam coisas que jamais viram. Graças à
internet, as pessoas podem conhecer mais o mundo. Paralelamente, em uma
sociedade onde há um forte consumo generalizado, a violência, mais
especificamente, a violência política tende a diminuir de forma que o
consumo pacifica o espaço público. E isso é um grande benefício.
Já os inconvenientes é que, para muita gente, a vida se tornou caótica.
Busca-se o tempo todo coisas novas que, ao final, não dão satisfação.
Cada vez temos mais coisas, mas o que não significa que estamos mais
felizes. Temos mais música, filmes, viagens, mas as pessoas estão mais
felizes? Imagino que não.
GU - O que é a hipermodernidade? Como você desenvolveu o conceito?
GL - Como
desenvolvo o conceito no meu livro “Os Tempos Hipermodernos”, a
definição é um pouco longa. Mas, em resumo, é a ideia de que a
modernidade não possui mais alternativa. A modernidade baseada na
democracia e no mercado não têm mais um contra-modelo. Antigamente sim, a
modernidade se construiu contra a tradição e, ao mesmo tempo, a
modernidade criou sua própria auto-crítica interna. Falava-se que a
democracia seria substituída pelo socialismo e que o mercado seria
substituído pelo comunismo. Atualmente, ninguém mais pensa em substituir
a democracia. Criticamos o mercado, o capitalismo, mas o que
colocaremos no lugar? Não há nada.
GU - Quais são os pensadores e as experiências
pessoais que o influenciaram durante o processo de construção do
conceito de hipermodernidade?
GL - A
transformação do capitalismo, o fenômeno da globalização e o fim das
grandes paixões políticas. Durante dois séculos, a democracia suscitou
paixões políticas muito fortes que, atualmente, desapareceram. As
grandes paixões das pessoas são as amorosas e consumistas. A política
ainda é importante, mas não possui mais uma representação forte na vida
dos indivíduos. Assim, essa é uma nova face da modernidade que começa.
Na modernidade clássica, a política era central, a política e o Estado
prometiam mudar o mundo. Hoje, se um político diz que vai mudar a vida
das pessoas, todo mundo vai rir. Ninguém acreditará nele, porque
atualmente o que muda a vida é o capitalismo. É no nível individual que a
mudança acontece. A política muda poucas coisas e as pessoas não
acreditam mais e não querem uma revolução.
Atualmente, cada um procura as suas próprias soluções. E não é
necessariamente negativo que hoje haja armas pessoais que nos
possibilite fazer projetos e realizar várias coisas. Isso é muito
dinâmico. O problema é que muitos não as têm. Essas pessoas sofrem com o
desemprego, a pobreza, mas elas não possuem recursos para construir sua
própria vida. Então, temos uma contradição, porque na sociedade
moderna, cada indivíduo é responsável pela sua vida, mas essas pessoas
não possuem meios para mudar a vida delas. Antigamente, não havia essa
contradição, pois se acreditava que era o destino. Atualmente, somos nós
que construímos nosso destino, mas quando eu não tenho mais trabalho,
quando eu sou jovem, o que eu posso fazer? É uma contradição terrível.
GU - Ao mesmo tempo, o consumo de produtos de luxo aumentou
consideravelmente nos últimos anos. Por que o luxo encanta as pessoas?
GL - Porque
o luxo oferece um universo de beleza e de qualidade. O luxo é um
fenômeno que traduz um desejo de qualidade de vida e de consumo de
produtos com mais estilo e beleza e não necessariamente voltados para a
sobrevivência. O crescimento desse consumo mais estético significa que a
maioria das pessoas procura uma experiência. As pessoas, por exemplo,
não querem só comer, elas querem ir a um restaurante. As pessoas não vão
mais a um hotel somente para dormir, elas vão a um hotel que deixe
lembranças, pela sua beleza e originalidade. Acho que isso vai se
traduzir em um novo tipo de consumidor mais estético que busca no
consumo as emoções. Assim, é uma procura pelo prazer, mas um prazer
refinado, estético e que ganha cada vez mais uma fração maior da
sociedade. As mulheres, atualmente, querem perfumes, cosméticos, todas
querem. Todos desejam viajar, ficar em bons hotéis e ir a bons
restaurantes. É uma promessa de felicidade. São coisas que nos trazem
experiências e que nos fazem viver de uma maneira muito mais intensa.
GU - Recentemente, os problemas ambientais influenciaram uma
nova forma de consumo baseado no discurso da sustentabilidade. A partir
do seu conceito de hipermodernidade, como o senhor compreende esse
fenômeno?
GL - Sim, é um novo fenômeno de
consumo, consumo de produtos verdes e orgânicos. Quando perguntamos para
as pessoas, todas dizem que são favoráveis. O problema é que estes
produtos ainda são caros. Mas, de fato, pode-se dizer que há uma certa
consciência das pessoas sobre a fragilidade do planeta, mas que, na
realidade, ainda representa pouca coisa.
Mesmo assim, isso se traduz em um novo tipo de consumidor, pois, apesar
desses tipos de produtos estarem na moda, o seu consumo representa o
prazer e, ao mesmo tempo, a responsabilidade com o meio ambiente. Há uma
mistura dessas duas coisas. Antigamente, a moda não se preocupava com
questões ambientais e com a preocupação com a responsabilidade na hora
de consumir. Atualmente, há uma responsabilidade social e ecológica.
GU - Em seus livros, você também comenta sobre a emergência de
um capitalismo cultural. Nesse sentido, o que o turismo representa para o
capitalismo?
GL - O turismo se traduz em
um consumo mais estético que procura novas experiências e sensações. O
turismo é a procura por novas sensações, novas paisagens, novas
descobertas. E esse fenômeno não vai parar. Antigamente, as pessoas, nas
férias, iam sempre com sua família para o interior. Hoje, elas querem
visitar novos lugares, há uma necessidade de sair do cotidiano. Podemos
dizer que há uma democratização pelo gosto estético, pelo consumo de
coisas somente pelo prazer. Pode-se dizer que há dois tipos de turismo.
Um turismo mais conformista que são as viagens organizadas. Como a
maioria das pessoas não passa um tempo infinito nos lugares, elas querem
conhecer os pontos turísticos mais célebres. Em Paris todos querem
conhecer o Louvre, a Torre Eiffel. Mas há também um turismo menos
ortodoxo, pessoas que constroem suas próprias viagens e que usam a
internet para isso.
Então, é possível ver essa tendência estética, pessoas que consomem
somente para o seu prazer. O turismo oferece uma experiência
completamente desconectada do cotidiano e da rotina. Quando você é um
turista, é como se você estivesse dentro de um filme. É uma
possibilidade de sair da vida real. É um tipo de consumo voltado
unicamente para o prazer.
Fonte: http://redeglobo.globo.com/globouniversidade/noticia/2012/10/entrevista-gilles-lipovetsky-aborda-o-papel-do-consumo-na-atualidade.html
Os Tempos Hipermodernos, Download:
http://www.4shared.com/office/7-1v13I5/os_tempos_hipermodernos.html