15 maio 2009

Temporalidade em Dança
de Fabiana Dultra Britto
r e s e n h a
J u s s a r a S e t e n t a
O título do livro já anuncia a complexidade argumentativa e a rede de informações, ideias, conceitos e constatações trabalhada pela autora. Há uma preocupação premente em articular ideias próprias às ideias de demais autores, o que fortalece a noção de coautoria e compartilhamento de propósitos. Já no índice é possível observar outro modo de organizar as partes do livro, numa demonstração de que importa propor exercícios de entendimentos e compreensões aos leitores, exercícios esses regidos por nomeações metaforicamente especializadas e cuidadosamente apresentadas ao longo do corpo textual.
Da Carta das Des/Intenções ao Canteiro de Obras se chega à discussão do Como é o que Existe para encontrar-se com a apresentação de argumentos que demonstram a Trajetória Histórica não é um Processo Evolutivo; que A Dança é um Sistema Coevolutivo; que a Evolução é outra História e, a proposição de Exercícios de Equivalência. Em complementação às ideias em discussão, a autora acrescenta nos anexos títulos e breve comentário de publicações nacionais de livros de dança preocupando-se em apresentar os autores aos leitores. Ainda, expõe bibliografia separada por temas argumentativos num zeloso cuidado acadêmico com aqueles interessados em dar continuidade aos estudos lá apresentados.
Todo o trabalho tem o propósito de discutir a questão da temporalidade na dança oferecendo novos parâmetros que venham colaborar para estudos no campo da historiografia da dança. Para tanto, constrói mapa investigativo com vistas a indagar como o modelo teórico da historiografia pode conseguir explicar “o sentido evolutivo do processo de transformação histórica da dança [...]” (p.13). O diálogo com os autores Ilya Prigogine, Daniel Dennett, Richard Dawkins, Helena Katz, Jorge Vieira, dentre outros, colabora na organização do pensamento da autora acerca do modo como a história da dança vem sendo apresentada aos interessados em dança, que inclui aqueles que estão nas universidades, nas academias, nos grupos artísticos, em ONGs, grupos comunitários e instituições de ensino formal. São inúmeros os interessados, mas ainda desproporcional aos que publicam suas ideias e compreensões da história da dança do Brasil e do mundo no nosso país.
A aproximação desses teóricos permite à autora tecer uma trama argumentativa dialógica e questionadora da realidade das informações históricas da dança no Brasil ao indicar que é possível trabalhar com o entendimento da história enquanto processo em vez de entendê-la enquanto acontecimentos pontuais que expressam relações frágeis de espaço e tempo. Ao invés de decalcar conceitos e transportá-los para propósitos discursivos, a autora relaciona entendimentos, compreensões, fatos de dança com concepções teóricas compatíveis com os princípios críticos e reflexivos aos quais se atém. Importa à autora “[...] aproximar a dança dos princípios lógicos e conceitos científicos condizentes com seu modo de existir no mundo, configurar-se no corpo e articular-se no tempo[...]” (p.14). Este tecido teórico está disposto nas partes do livro que se preocupam com as afinidades entre dança e pressupostos científicos sem a intenção de fundir conceitos, mas apresentá-los em suas configurações teóricas de maneira relacional e compatível com as compreensões de seus contextos.
Na parte dos Exercícios de Equivalência, a autora expõe considerações aproximativas sobre temas que provocam posicionamentos e indicação conceitual, sendo eles: questão de enquadramento; identidade/nacionalidade; emergência; modelos de conjugação entre teoria e dança; flexibilidade adaptativa; a tese. Em todos os exercícios o foco recai sobre a dança contemporânea, isso porque a autora considera que a mesma “expressa uma lógica relacional não hierárquica entre corpo e mundo [...] se organiza à semelhança de uma operação metalinguística, na medida em que transfere a cada ato compositivo os papéis de gerador e gerenciador das suas próprias regras de estruturação” (p. 15).
Os exercícios descritivo-argumentativos expõem a responsabilidade e pensamento crítico da autora ao tratar das temáticas relacionadas às produções artísticas. Convém ressaltar que houve o cuidado na escolha dos artistas do mesmo modo que na escolha dos teóricos e elas (as escolhas) se aproximam por meio das concepções de mundo, espaço e tempo diferenciados. As concepções teóricas apresentam-se correlacionadas às concepções artísticas que, por sua vez, fazem parte do conjunto artístico-crítico-argumentativo da autora.
As ideias teóricas acerca da complexidade (Prigogine), de memes e design (Dawkins), da dança como pensamento do corpo (Katz) e dos parâmetros sistêmicos da Teoria Geral dos Sistemas (Uemov e Vieira) estão aqui destacadas e relacionadas às ideias/produções artísticas expressas no FID 2001 com The Show Must Go On (Jérôme Bel), Mono Subjects (Thomas Lehmen), Not To Know (Benoit Lachambre), Self Unfinished (Xavier Le Roy), Au Bord dês Métaphores (Rachid Ouramdane), Still Distinguished (Maria de La Ribot), Muzz e Lamont Earth Observatory (Sarah Chase), The Princess ProjectSummerspace e Biped (Merce Cunningham); El Trilogy (Trisha Brown), I sais I (Anne Teresa de Keersmaeker), Artérias: quando se perde o norteCravos (Pina Baush), MTD -90; O Corpo (Rodrigo Perdeneiras/Grupo Corpo). (Xavier Le Roy), (Cia. 2 Nova Dança), (Vicent Dunoyer), A autora traz em sua construção argumentativa a compreensão de história a partir de uma perspectiva de temporalidade assimétrica para interpretar e descrever sistemas culturais e propõe que a história da dança seja entendida não como “eventos locais que ocorrem num ponto dado do espaço e num instante dado da história” (p.52), mas como processos contínuos e difusos. Isso porque “[...] indivíduos e obras artísticas são únicos, mas implicados irremediavelmente numa mesma atividade global de organização do tempo - a história” (p.52).
O sentido processual e assimétrico proposto pela autora para pensar dança e história da dança estão compatíveis com considerações acerca da diferença entre justaposição e interação e “[...] da dinâmica de interação entre os componentes desses conjuntos (passos, acontecimentos) para tratá-los como sistemas e compreendê-los na sua complexidade ” (p.68). O entendimento de dança, história e historiografia tecido por Fabiana Britto conduz o leitor para exercícios não lineares de pensamento ao mesmo tempo em que convida a pensar os escritos de dança sob perspectiva crítico-reflexiva. Importa destacar que a pouca publicação de dança efetivada no nosso país é tratada pela autora não como sendo um atraso da dança, mas como “descompasso rítmico entre seu modo de ocorrer e a produção intelectual atualizada sobre sua ocorrência. Por falta de recursos teóricos competentes para lidar com questões conceitualmente sofisticadas, os temas difíceis relativos à sua especificidade artística mantiveram-se alojados no campo dos clichês e das licenças poéticas [...]” (p.20).
Essa consideração conduz à reflexão sobre o modo de pensar/falar/fazer dança realizado por professores, artistas, pesquisadores e outros. Faz refletir ainda sobre a ampliação dos cursos superiores em dança no país e sobre a relação entre formação e mercado prevista pela LDB 5692/96. Assim, a publicação dessas ideias em formato de livro colabora significativamente para o campo da dança e é um convite para o exercício de leitura desafiador, complexo e instigante, mas indispensável àqueles que tratam a dança respeitando suas especificidades e que trabalham pela promoção do entendimento de sua complexidade.