09 julho 2013

PROJETO CORPO TELESONORO 

Conversa Ivani Santana, Ricardo Jacinto e Beatriz Cantinho
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Performance Acordo
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Performance Acordo Versão 2
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PROJETO CORPO TELESONORO
Grupo de Pesquisa Poéticas Tecnológicas Corpo Audiovisual

Pesquisadores Colaboradores 
Bruno Rohde, Felipe André Florentino, Hugo Leonardo, Ivani Santana, JK, Pedro Rebelo, Sandra Corradini  

Coordenação
Ivani Santana

Ensaios realizados no Teatro Martim Gonçalves, na Escola de Teatro da UFBA, em outubro de 2012.




O Conceito de Rede Colaborativa Local

Naquele que pode ser considerado um dos estudos mais profundos até aqui produzidos sobre o significado e a importância do fenômeno das redes na sociedade contemporânea, Castells afirma: “Redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades, e a difusão da lógica de redes modifica de forma substancial a operação e os resultados dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura. Embora a forma de organização social em redes tenha existido em outros tempos e espaços, o novo paradigma da tecnologia da informação fornece a base material para sua expansão penetrante em toda a estrutura social. Além disso, eu afirmaria que essa lógica de redes gera uma determinação social em nível mais alto que a dos interesses sociais específicos expressos por meio das redes: o poder dos fluxos é mais importante que os fluxos do poder. A presença na rede ou a ausência dela e a dinâmica de cada rede em relação às outras são fontes cruciais de denominação e transformação de nossa sociedade: uma sociedade que, portanto, podemos apropriadamente chamar de sociedade em rede, caracterizada pela primazia da morfologia social sobre a ação social”. (1)
A Rede Colaborativa Local se define como um processo de captação, articulação e otimização de energias, recursos e competências, capaz de gerar um sistema de relacionamentos que organiza indivíduos e instituições de forma igualitária, em torno de um objetivo ou agenda comum de caráter público.
Assumindo a lógica das redes, a rede colaborativa se reveste do potencial revolucionário apontado por Castells, mas busca, todavia, canalizar o ‘poder dos fluxos’ para o alcance de finalidades sociais que justificam a sua criação: por exemplo, a melhoria das condições de vida de crianças e adolescentes. Neste caso, a rede colaborativa assume o caráter de rede ativa, comprometida com mudanças sociais locais.
Alguns significados da Rede Colaborativa Local estão contidos na seguinte definição: “Redes são sistemas organizacionais capazes de reunir indivíduos e instituições, de forma democrática e participativa, em torno de objetivos e/ou temáticas comuns. Estruturas flexíveis e cadenciadas, as redes se estabelecem por relações horizontais, interconexas e em dinâmicas que supõem o trabalho colaborativo e participativo. As redes se sustentam pela vontade e afinidade de seus integrantes, caracterizando-se como um significativo recurso organizacional, tanto para as relações pessoais quanto para a estruturação social”. (2)
A RITS – Rede de Informações do Terceiro Setor (3) – define três categorias de redes: 1) redes temáticas – que se organizam em torno de um tema, segmento ou área de atuação das entidades e indivíduos participantes; 2) redes regionais – que têm em uma determinada região ou sub-região o ponto comum de aglutinação dos parceiros; 3) redes organizacionais – que congregam instituições autônomas filiadas (federações, associações de entidades etc.) ou organizações autônomas e/ou dispersas territorialmente.
A Rede Colaborativa Local contém os atributos dos três tipos de rede acima citados: 1) possui um foco temático (questões da área da criança e do adolescente); 2) sua base territorial é um município; 3) seus agentes são as organizações que atuam no espaço local. Desta forma, a Rede Colaborativa Local adquire a dimensão mais ampla de rede organizacional orientada para a ação e interessada na melhoria das condições de vida da população em uma comunidade geográfica definida. Sua característica central é colaboração participativa estruturada para promover mudanças sociais.
O processo de formação de redes colaborativas envolve a busca de superação de interesses corporativistas, de relações de dependência e da tradição hierárquica e clientelista que ainda marcam as relações sociais e intersetoriais, sobretudo no nível municipal. Redes abertas permitem que as informações possam ser compartilhadas por todos, sem canais reservados, e favorecem a formação de uma cultura de cooperação que fortalece, ao mesmo tempo, a autonomia dos participantes.
As redes funcionam melhor se, entre seus membros, se aprofunda a colaboração, a solidariedade, a transparência e a co-responsabilidade. A construção de redes colaborativas envolve um processo de aprendizado que, gradativamente, possa superar: – A tendência a uma atuação mais baseada no esforço e no sucesso individuais do que na cooperação e valorização dos resultados obtidos conjuntamente. – A tendência de trabalhar para e não com a comunidade, derivada da cultura assistencialista ainda predominante em boa parte das empresas, entidades sociais e órgãos governamentais. – A tendência de se procurar as causas dos problemas unicamente em fatores externos ao município e de subestimar os recursos e potencialidades locais como fontes de solução para os problemas. – A tendência de que as ações da rede sejam anexadas ou subordinadas aos interesses de organizações tradicionalmente dominantes no município, ou de que se busque uma integração automática das ações ao invés de uma articulação que possa garantir o efetivo crescimento coletivo.
Para tanto, a Rede Colaborativa Local deve operar segundo um modelo de ação comunicativa e compartilhada, na qual “o poder resulta da capacidade humana não somente de agir ou de fazer algo, como de unir-se a outros e atuar em concordância com eles” (4). Este modelo de ação se contrapõe ao modelo instrumental de gestão e tomada de decisão, que se baseia essencialmente na manipulação de meios ou no uso de sanções que possam influenciar o comportamento alheio. Enquanto no modelo instrumental os agentes, via de regra, competem num determinado espaço social ou mercado com vistas ao próprio sucesso, no modelo comunicativo e compartilhado os participantes estão orientados para alcançar consensos de forma não-coercitiva. Contrapondo-se aos modelos baseados em relações impositivas, algumas definições de rede falam na importância da criação de relações horizontais entre os agentes. Porém, a atuação em rede colaborativa requer um tipo de interação e comunicação que pode ser mais bem denominada como “transversal”.
A comunicação transversal se opõe quer à verticalidade dos contatos regulados por posições hierárquicas ou status privilegiados socialmente adquiridos (que reproduzem relações de subordinação e obediência), quer à horizontalidade dos contatos que se desenvolvem pela mera coexistência num espaço comum (que não criam novos vínculos capazes de transformar a realidade). A transversalidade tende a se realizar “quando uma comunicação máxima se efetua entre diferentes níveis e, sobretudo, nos diferentes sentidos” (5), ou seja, quando a comunicação é uma busca conjunta de compreensão do significado e da importância que os diferentes agentes atribuem aos objetivos que justificam sua participação na rede.
Operada segundo os princípios do diálogo e da busca do consenso em torno de prioridades coletivamente estabelecidas, a Rede Colaborativa Local deve atender fundamentalmente a três exigências: – Legitimidade: constituir-se como uma rede de nítido caráter público e compromisso com a busca de melhores condições de desenvolvimento para crianças e adolescentes, aberta à participação de todos os setores, orientada para cooperação e promoção do bem-comum, disposta a exercer uma ação articulada à do Estado e a disseminar, de forma ampla, transparente e eqüitativa, as informações e recursos que puder mobilizar. – Efetividade: conseguir extrair todas as implicações positivas do conceito de rede, evitando a burocratização das suas atividades, mobilizando e sustentando constantemente parcerias e garantindo a otimização de recursos e o seu direcionamento eficaz. – Sustentabilidade: estabelecer-se como processo permanente e auto-regulado de mobilização, garantindo a preservação da identidade dos agentes no processo de construção da rede, organizando um mecanismo adequado de coordenação e reposição das suas atividades.
Notas:
(1) Castells (1999).
(2) Olivieri (2002).
(3) www.rits.org.br
(4) Arendt (1970).
(5) Guattari (1985).
Bibliografia citada:
ARENDT, H. Poder e violência. Munique, 1970.
CASTELLS, M. A sociedade em rede (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 1). São Paulo: Paz e Terra, 1999.
GUATTARI, F. Revolução molecular. São Paulo: Brasiliense, 1985.
OLIVIERI, L. A importância histórico-social das redes. In: Manual de redes sociais e tecnologia. São Paulo: CONECTAS/Friedrich Ebert Stiftung, 2002.

Entrevista com Félix Guattari
A Subjetivação Subjversiva



Para o pensador francês, coisas como a crise no Oriente Médio, o racismo, a violência nas grandes cidades e a drogaestão relacionadas com o achatamento das subjetividades, que podem subverter a ordem opressora através de movimentos conservadores, desafiando a lógica progressista.

por Antônio Lancetti e Maria Rita Kehl*


Impossível definir Félix Guattari como pensador sem levar em conta a sua dimensão militante, já que para ele essas coisas não se separam: a reflexão e suas conseqüências práticas, o individual e o social, o público e o privado. Por isso mesmo, Guattari foi se transformando nessa espécie riquíssima (e hoje rara) de ser humano que vai sendo expulso, ou se auto-expulsando, de todas as instituições, de todos os lugares onde pensamento e ação se paralisam, comprometidos com a manutenção de posições de poder: as sociedades de psicanálise na França, os movimentos e partidos políticos, os modismos intelectuais que tendem a banalizar na forma de grandes conceitos universais a multiplicidade das singularidades humanas.

Excêntrico (ou seja, fora do centro), mas não marginal; coerente com suas idéias, o autor do Anti-Édipo (com Gilles Deleuze), Revolução molecular, Cartografias do desejo (com Suely Rolnik) e do recente As três ecologias, não se considera sem lugar, num mundo onde os territórios devem ser continuamente reinventados. Esta excentricidade fez com que ele sempre se interessasse pelas formações sociais que expressam dissonâncias subjetivas em relação ao achatamento que o mercado e os mass media promovem: dos movimentos de 68 na Europa à guerra no Oriente Médio, das rádios livres à ecologia, da crise no Leste Europeu à reinvenção do socialismo pelo PT, partido que ele acompanha com interesse desde sua fundação.
A entrevista que se segue foi concedida por Félix Guattari a Antônio Lancetti e Maria Rita Kehl, durante sua última visita a São Paulo, em agosto deste ano. A tradução é de Peter Pál Pelbart.


Podemos começar pelo mais atual: como você está vendo esse conflito no Oriente Médio?
O tempo das opiniões definitivas acabou. Esses acontecimentos me inspiram sentimentos e pensamentos contraditórios. Evidentemente, devemos condenar o gangsterismo internacional de Saddam Hussein, que constitui uma violação flagrante dos direitos dos povos de dispor deles mesmos. Ao mesmo tempo, existe essa política inquietante dos Estados Unidos. É como se desde a queda do Muro de Berlim houvesse uma única superpotência, que se permite tudo: os EUA. Não é certamente assim que se resolverão os problemas econômicos do Terceiro Mundo. A crise iraquiana, que é o prolongamento da guerra Irã-Iraque, inscreve-se no que tem sido, nos últimos decênios, a política capitalista no Oriente Médio. Pode ser que com essa guerra nós entremos num período muito difícil das relações internacionais. Antes, os conflitos locais eram sempre sobrecodificados pelo conflito Leste-Oeste. Os conflitos do Vietnã, do Afeganistão, encontravam sempre seu limite, porque num certo momento atingiam um ponto a partir do qual poderia se desencadear uma guerra mundial. Atualmente este perigo é quase inexistente, de modo que uma guerra local praticamente é ilimitada. Iraque, Israel, podem empregar armas químicas ou atômicas, sem que nenhum constrangimento estrutural nas relações internacionais os interdite.



Qual é o outro lado dessa guerra que você chamou de conflito de subjetividade entre um modo capitalista e um modo árabe?

Os países do Sul, denominação que prefiro a "Terceiro Mundo", estão sendo laminados pela subjetividade capitalistamass mediática. Todas as antigas estruturas sociais e subjetivas estão sendo destruídas, e estão sendo injetadas representações mentais, afetos e ideais de status importados dos países desenvolvidos. Há diferentes níveis de resistência a esses processos de laminação. Nos países do Oriente Médio, isso tornou a inquietante forma de um integrismo que não se pode considerar somente como a retomada de um arcaísmo muçulmano, mas também como uma reinvenção total desses elementos religiosos. Essa reinvenção pode ser comparada com a que Hitler fez de temas como povo, raça, sangue, mitos germânicos. Esses arcaísmos são, na realidade, formas de fascismo moderno, com tudo o que isso implica em termos de ameaça de desestabilização para a Europa - basta ver os efeitos subjetivos que já se fazem sentir, como, por exemplo, o fortalecimento de ideologias racistas, que, especialmente na França, tomaram um peso político considerável.


Dos anos 60 para cá, ao mesmo tempo que houve uma emergência do subjetivo na cena político-social, facilitada pelos mass media, aconteceu também um achatamento das pequenas diferenças individuais e grupais, uma invasão e uma simplificação das próprias subjetividades pelas esferas política, econômica etc. Quando você fala da laminação que a lógica de mercado impõe às diferenças, o que é que fica reprimido, capturado pelo mercado, ou por políticas fascistas, ao invés de libertado, como se anuncia?
O problema se coloca aparentemente em termos de difusão sobre um mercado subjetivo agora planetário - de imagens, representações, enunciados etc. Toda a questão é saber como essas imagens e representações são consumidas - se tomadas somente numa relação de sugestão, que implica por parte dos consumidores uma espécie de passividade, ou se reapropriadas individual e coletivamente. Mas há um desafio aí, micropolítico, político, primordial, porque essa reapropriação não se dá necessariamente no sentido progressista. A força dos movimentos racista-reacionários, como a Frente Nacional, na França, ou o Pamiat, na Rússia, é que eles catalisam uma autonomia subjetiva, ao sair da consumação passiva da media. Há uma potência libidinal nesses movimentos reacionários. Nesse sentido, é que não dá para considerá-los movimentos totalitários, simplesmente. Essa característica é que lhes dá capacidade de ganhar terreno sobre os movimentos operários tradicionais. Então, de duas, uma: ou os movimentos progressistas, os movimentos de liberação contemporâneos perderão terreno - incapazes de apreender os novos dados da subjetivação coletiva -, ou adquirirão meios de fazer com que essa subjetivação se dê de maneira verdadeiramente progressista, desenvolvendo referências de liberação, criando novos espaços de liberdade, propondo novos horizontes à subjetivação, fora dos marcos tradicionais e conservadores, e, em particular, reinventando os modos de se fazer política, porque essa temática não é só ideológica e não seria suficiente que o PT, por exemplo, levantasse a bandeira da revolução molecular. É preciso que o PT comece a fazer a sua própria revolução molecular, a sua própria análise institucional - especialmente num terreno que me parece evidente, que é o do papel das mulheres na organização -, o que representa descentrar as preocupações políticas tradicionais.


O Brasil está marcado pelo estigma do novo. O lema do governo Quércia é Novo Tempo; o do governo Collor, Brasil Novo. Estas representações pressupõem a velhice e o fracasso do socialismo. Este excesso do uso do novo tenta apropriar-se do efeito Leste Europeu com uma intencionalidade neoliberal...
Não conheço bem a realidade brasileira, mas me parece que o capitalismo foi capaz de integrar subjetivamente o planeta, sem conseguir fazê-lo do ponto de vista econômico. Quais são os únicos "sucessos" do capitalismo no Terceiro Mundo? As medalhas ganhas ao custo de uma exploração impressionante: Hong Kong, Formosa, Coréia do Sul, Cingapura etc. Mesmo onde havia possibilidades imensas, como no Oriente Médio, pode-se dizer que o balanço, levando em conta a vida de milhões de indivíduos, é totalmente negativo. Em relação aos países do Leste Europeu, é possível que com muita dificuldade a Alemanha Oriental se integre ao sistema. Pode ainda ocorrer a integração de parte da Tchecoslováquia ou da Hungria, uma integração parcial de certas áreas geopolíticas, mas na grande maioria dos casos os países do Leste e as Repúblicas Soviéticas correm o risco de cair num processo de terceiro-mundização. Então, o triunfo do capitalismo liberal, confesso que não o vejo muito bem, pois se for para transformar a periferia de Moscou em alguma coisa como o Bronx ou o Harlem, acho que a vitória é relativa.


Fale da idéia de liberdade e sua relação com o "fim do socialismo".
Pessoalmente, não vejo inconveniente algum em que se termine com uma falsa representação do socialismo burocrático, um socialismo de Gulags - e mesmo de um socialismo tutelado, como esse de Cuba. Não é algo que nos force a tomar uma posição depressiva; é algo que libera o campo do possível: vai ser preciso reinventar alguma coisa que se chame socialismo ou tenha qualquer outro nome, não importa. Para isso, é preciso que os objetivos de luta sejam muito menos dogmáticos. Deve haver uma orientação para uma concepção pluralista de mercado e Estado, o que acarretará o fim de um certo dualismo mecanicista entre a função pública e a privada. Acho que existe toda uma invenção institucional que implica a autonomização das entidades sociais e culturais, não através do mito da autogestão absoluta, mas de articulações com diferentes mercados. Por exemplo, os empreendimentos educacionais ou psiquiátricos deveriam escapar dessa espécie de dilema diabólico, entre a tutela burocrática do Estado, que é quase esterilizante (pelo menos na França), e a captura pela área privada. Há todo um terceiro setor instituído, de economia social, experimentação coletiva, que as novas formações políticas deveriam sustentar - o que significaria, da parte delas, renunciar à associação com tendências corporativistas que existem no movimento operário e entre os funcionários. Um outro problema é o da redefinição das relações entre o trabalho e a atividade social. A informatização e a robotização da produção tendem a eliminar muitos postos de trabalho tradicionais. Com isso, criam-se novas perspectivas, como a de se incorporar o trabalho doméstico ao regime salarial. O último ponto é que as organizações políticas, elas mesmas devem se redefinir, redefinir o tipo de articulação que têm com seu campo pragmático. É por essa via que talvez haja a recomposição de um "socialismo". Mas essa via requer um enriquecimento, uma maior complexidade em relação aos organismos militantes tradicionais, existentes sob o centralismo democrático.



Está se falando de uma organização crescente no campo social, se é que compreendo o que você diz. Eu pergunto: o que será da dimensão do prazer, do divertimento? Será que isso pode ser organizado? Como é possível manter dimensões da vida que não sejam diretamente regidas por lógicas de estado ou mercado?Eu acho que a maior violência que uma lógica capitalista nos impõe, sem que percebamos, é este achatamento do tempo, que causa um desconforto, um descontentamento existencial que talvez possa explodir nessas demonstrações fascistas que você apontou. As pessoas não agüentam mais viver neste mundo tedioso, opressivo, e não conseguem localizar o descontentamento.

Bom, se a finalidade das lutas sociais e das lutas de subjetivação sair de uma lógica estrita de correlação de forças para a apropriação de bens e a tomada do controle das formações de poder; se, em lugar disso, for dada outra finalidade à atividade social e à individual, de ressingularização da existência, mais no sentido do dissenso que do consenso, deve-se adotar uma lógica segundo a qual as coisas não são brancas ou pretas, sim ou não, mas compostas. Uma lógica que evoca o que Freud chama de processos primários. É esta a dimensão ético-política sobre a qual eu insisto tanto. Um exemplo que diverte é a reflexão que Merleau-Ponty fez em uma de suas aulas. Ele visitou uma escola de método Freinet, e uma criança lhe perguntou: "No ano que vem nós seremos obrigados a ser livres?". Não se pode obrigar os pedagogos e os professores a utilizar métodos revolucionários, não se pode obrigar os trabalhadores de saúde mental a se "converter" à psicoterapia institucional. É preciso existir um fator de autodeterminação. Não se pode regulamentar - seja o Collor, seja o PT, dá na mesma, não teria sentido.


Mas o que eu queria perguntar é se a via política é adequada para mudar comportamentos da via privada. Se isso não seria uma redução do privado ao público. 
Talvez haja uma micropolítica do privado e objetivos moleculares que trabalham o público. Há, provavelmente, um cruzamento, uma transversalidade entre o que você chama de a via do público, e a do privado, que faz com que, por exemplo, o problema da emancipação da condição feminina se coloque ao mesmo tempo numa micropolítica privada e também nas relações no plano público, restabelecendo sistemas de parentesco, redefinindo a distribuição de responsabilidades em todos os aspectos da vida social e individual.


Ainda se fala em "luta ideológica" em relação a essas coisas. É um processo lento, não?
Muito lento quando se concebe a ideologia como uma modelização cognitiva procedente de um modo discursivo, pedagógico etc. No entanto, algumas vezes existem mutações ideológicas muito brutais, muito rápidas, como nos anos 60, ou como a que ocorre no Oriente Médio.


Você veio várias vezes ao Brasil e tem contato com o PT há dez anos. Que impressão você leva desta última viagem, e , mais especificamente, o que você achou do Hospital Anchieta, em Santos, um investimento concreto de uma administração petista na área psiquiátrica?
No início eu me perguntava se o PT, sob influência desses componentes sectários, "grupusculares", dogmáticos, não se transformaria numa formação política tradicional. Eu me lembro, por exemplo, dos debates com a Katerina Koltai, com o Liszt Vieira, no começo dos anos 80, sobre drogas, onde todas essas dimensões da revolução molecular não podiam ter lugar dentro do PT. Com a expansão extraordinária do partido, tenho a impressão de que a situação evoluiu muito, e que estamos numa posição transitória: ou haverá uma situação em que, de um lado, existirão os militantes de campo e, de outro, os militantes de aparelho - e a meu ver, se isto acontecer, o PT terá o destino de uma organização tradicional e talvez perderá sua influência -; ou, ao contrário, o PT continuará a ser um laboratório social em grande escala e inventará um novo tipo de militância, um novo tipo de liderança. Neste caso, ele pode ter plenas condições de tomar o poder no Brasil, de ter uma importância considerável em toda a América Latina e mesmo no mundo inteiro... Porque não existem muitos laboratórios sociais hoje em dia tão ricos e progressistas quanto o PT. Quanto à segunda pergunta, com esse apoio da Prefeitura de Santos, que me parece precioso, vocês estão tendo uma experiência extraordinária no campo do que se poderia chamar de revolução psiquiátrica.


O que sobrou da Revolução Molecular? Parece que a grande recusa que os jovens prometeram fazer, nos anos 70, em relação à sociedade de consumo, não se concretizou. 
Eu acho que você interpretou essa temática num sentido unicamente progressista. Se você evocar os fenômenos da contracultura nos anos 60, verá bem a conjunção entre isso que eu chamo dos fenômenos da revolução molecular, isto é, das subjetivações emergentes, e das temáticas utópicas e progressistas. Mas são duas coisas independentes. A revolução molecular, eu repito, e parece que nunca repito o suficiente, se exprime também através de fenômenos conservadores, de reterritorialização, como o racismo crescente, a violência, a droga etc. Enfim, esses também são componentes da revolução molecular.


Mas por que então você usa o termo "revolução"?
Porque são transformações sui generis, que implicam uma nova percepção do mundo, uma nova percepção da violência, uma nova relação com o corpo, uma nova relação com o tempo, que participam de uma revolução/produção: se você quiser, poderíamos dizer produção molecular. Se o termo "revolução" atrapalha, pode-se substitui-lo facilmente por produção subjetiva, ou por produções emergentes. Pois bem, essas problemáticas de produção da subjetividade ou revolução molecular foram sistematicamente afastadas e sufocadas pelos pensamentos capitalista e socialista - pelos pensamentos dominados, pela transcendência dos poderes de Estado.
Mas hoje isto explode de todos os lados, nos países do Leste Europeu, China, Oriente Médio, através de modalidades muito diferentes, com um avanço demográfico incrível, que faz com que centenas de milhões de jovens no planeta não encontrem seu lugar na sociedade dominante; isto explode com os problemas de racismo, com os problemas da condição feminina que continuam a se colocar. Então, eu não digo que isto vá caminhar num sentido progressista, mas que os movimentos progressistas devem se recentrar, para reformular sua ação sobre este tipo de problemática, pois, do contrário, eles farão a política dentro dos belos bairros do Rio e São Paulo, falarão na televisão, mas isso não terá a mínima relação com as realidades sociais, políticas e afetivas de um país como o Brasil.


Dentro do PT há algumas concepções, até dominantes, que entendem a micropolítica como oposição à macropolítica, e chamam o pensamento de Guattari, Deleuze e de Foucault de concepções minimalistas do poder... 
Por que eu me interessaria por um partido político como o PT? Eu sempre disse, sempre, sempre, que é primordial construir grandes máquinas de guerra social, máquinas capazes de ações centralizadas, de intervir sobre as relações de força etc. - porque sem isto a revolução molecular permanece somente molecular, escapa por todos os lados e não pode influir sobre as grandes relações sociais. O que provocou a explosão do conservadorismo em todos os países desenvolvidos nos anos 80 foi precisamente o fracasso da revolução molecular dos anos 60. A onda reacionária dos anos 80 foi fruto do fracasso da revolução molecular. Fracassou porque não se construiu novas máquinas sociais e a velha CGT, o velho PC, a velha social-democracia continuaram a capitalizar os movimentos sociais. Mas havia lugar para a invenção de um PT na França! Eu tentei intervir neste sentido, mas não tive sucesso.


Talvez seja o caso de perguntar qual a sua noção de progressismo.
É isso, é a própria noção de progressismo que é preciso colocar em questão, este mito da dialética hegeliana, da dialética marxista. de pensar que quanto mais a história avança, mais as máquinas técnicas e científicas se desenvolvem, e que teremos um horizonte resplandecente diante de nós. Nós temos também um horizonte de fascismo planetário, um horizonte de explosão demográfica, de degradação total do planeta no plano ecológico, e esta é também a "finalidade da história". Tudo é possível neste plano, e daí o caráter completamente angustiante, dramático, da situação, mas também o seu caráter exaltante, porque as práticas sociais, a criatividade, a inventividade. em quaisquer domínios, colocam ao nosso alcance o futuro da humanidade, e também da biosfera, a sobrevivência do planeta etc.


As "lutas intestinas" no PT têm muito a ver com este "efeito Hegel" entre os militantes de esquerda, ou, por outro lado, com a concepção religiosa da militância. Qual a distinção entre uma prática democrática da igualdade e uma democracia da diferença?
A questão das lutas intestinas se liga à problemática da alteridade. Não se trata de aceitar o outro em sua diferença e sim de desejar o outro em sua diferença, como escreve Emmanuel Levinas. As lutas intestinas são lutas capitalistas, de afirmação narcísica: "não quero saber o que o outro pensa, quero deter o saber absoluto, o que me confere poder". São neuroses da esquerda.


E o aspecto religioso dos conflitos?
Um dos grandes sucessos do PT, a meu ver, foi o de ter sido capaz de capitalizar o que há de melhor na subjetividade religiosa - o aspecto da devoção, da abertura ao outro etc. - nas práticas sociais dos militantes católicos. Mas se trata de entender essa pertinência às ideologias religiosas como algo fora da esfera ideológica. Essas noções existenciais como ser mulher, ser artista, viver alguma relação de transcendência, não pedem julgamento da ordem de certo ou errado, quem tem razão etc. Pelo contrário, são vivências que implicam um reconhecimento do outro em suas diferenças existenciais. Isto é possível graças à abertura de espírito, à rica sensibilidade de um personagem como Lula, que possibilitou a coexistência de militantes marxistas dogmáticos com militantes católicos. Isto, porém, tem um aspecto negativo: há uma religiosidade militante que pode ser sentida como intrusiva pela população, como se fosse coisa de novos padres. Para mim, isto é um problema de ecologia mental das organizações. O investimento militante totalizante empobrece as outras dimensões da vida. Viver fanaticamente a militância, não dormir etc.. empobrece a riqueza da vida - a existência não se resume à militância. Este tipo de modelação subjetiva também tem um sentido capitalista, um sentido religioso, reducionista. Para isso acho que o melhor remédio é o humor, misturado à ternura. Outro aspecto da aceitação das diferenças dentro do PT é o jogo que existe entre os rostos dos líderes. Veja estes dois, o Lula e o Suplicy, (e não é por acaso que os tomo como exemplo): são tão diferentes, e, no entanto, tanto em um como em outro se percebe imediatamente (no sentido da apreensão não-discursiva) uma enorme riqueza, uma enorme ambigüidade em suas posições existenciais. Não são formais, fabricados. Neles há uma inquietação, uma ternura... Deles emerge uma problemática pessoal, individual, de aspectos contraditórios. A imagem dos dois subverte a idéia de liderança típica da media - o tipo bon chic/bon genre -, e acho que foi isso que permitiu a expansão fulgurante do PT entre a opinião pública.


Nas eleições presidenciais, o PT enfrentou uma verdadeira guerra de mídia, principalmente no segundo turno. Para enfrentá-la, apropriou-se de certos clichés - "Rede Povo", por exemplo -, decompôs algumas unidades semióticas e utilizou outras consagradas. Qual a sua hipótese acerca desta práxis?
O sucesso do Lula em 89 foi por ele ter mostrado que poderia ser como os outros, no sentido da capacidade de performance em relação à subjetividade dominante própria dos líderes. Evidentemente, a calúnia deve ter contribuído para a derrota, mas acho que ele perdeu precisamente porque não trabalhou suficientemente a sua singularidade; se ele tivesse marcado mais a diferença existencial específica,, talvez tivesse vacinado a opinião pública contra as calúnias. Mas ele fez demais o jogo das identificações subjetivas, e talvez por isso não tenha sido capaz de legitimar a tempo suas diferenças. Aí entra a necessidade de um grande trabalho de subversão da subjetividade mass mediática. Isto se pode fazer pela invenção de novas relações mediáticas, pela evolução das técnicas, pela reapropriação dos meios (como, por exemplo, o caso do vídeo TV Tantan, feito pelos pacientes do Hospital Anchieta), e também pela subversão da media existente, desfazendo as armadilhas mass mediáticas nos debates e nas emissões dos diversos partidos.


Para terminar: a maioria dos partidos políticos, incluindo o PT, propiciam a esperança. Spinoza disse que a esperança e o medo são paixões tristes-reativas, que uma não se entende sem a outra. O que você acha da esperança? 
É uma droga como o álcool, o cigarro... E sempre dá para fazer uma pirueta com a esperança.
Antônio Lancetti é analista institucional e um dos coordenadores do Programa de Saúde Mental da Prefeitura de Santos. Maria Rita Kehl é membro do Conselho de Redação de Teoria & Debate.

In Teoria e Debate nº 12 - outubro/novembro/dezembro de 1990, publicado em 10/04/2006

03 dezembro 2012

Definir performance é um falso problema

Entrevista com Eleonora Fabião

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O conceito de performance ligado à arte é bem escorregadio e, por outro lado, existe uma visão mais senso comum do termo bem limitadora. O que realmente é performance? Existe um conceito mais fechado do termo?
A performance é uma prática artística que se desenvolve como gênero ao longo da segunda metade do século XX, ou seja, depois da Segunda Guerra Mundial e suas catástrofes correlatas. Digo “se desenvolve como gênero” pois muitos historiadores defendem a idéia de que as origens das práticas performativas são mais remotas. Alguns propõe que a performance tem suas raízes fincadas nos movimentos de vanguarda do início do século (dadaísmo, surrealismo etc.). Outros sugerem que a performance é tão antiga quanto o ritual. É importante enfatizar que a noção de performance como a conhecemos hoje aparece por volta dos anos 1960, quando inúmeras manifestações artísticas - que não podiam ser classificadas como teatro, dança, pintura, escultura ou qualquer outro gênero previamente conhecido - começam a acontecer simultaneamente pelo mundo afora. A performance surge no cenário pós-guerra como uma denúncia, uma resposta e uma proposta. Gosto de colocar a performance em perspectiva histórica e relativizar sua origem ao invés de buscar defini-la ou enquadrá-la teoricamente. A estratégia da performance é resistir a definições. Ela trata justamente de desnortear classificações, de desconstruir modos tradicionais de produção e recepção artística. É um expoente da arte contemporânea porque suspende certezas sobre o que seja “obra de arte”, “espectador” e “artista” ao lançar perguntas desconcertantemente fundamentais como: o que é arte? o que move a arte? o quê a arte move? quê arte move? Enquanto gênero, a performance não fixa formas espaciais ou temporais, não utiliza mídias ou materiais específicos, nem estabelece modos de recepção ou critérios de documentação. Alguns performers trabalham em espaços públicos, outros em galerias ou demais espaços destinados à fruição artística, outros em seus próprios estúdios ou casas, enquanto outros preferem espaços rurais. O mesmo sobre a temporalidade da performance: há peças com duração de um ano enquanto outras duram horas, minutos ou mesmo segundos. Quanto às mídias e materiais utilizados pelos artistas, a diversidade também é grande. Quanto à recepção da performance, também impera a indeterminação: alguns artistas performam para espectadores (que tornam-se cúmplices ou testemunhas de seus feitos), outros com os espectadores (que tornam-se assistentes e até mesmo co-realizadores do evento), e outros sem espectadores (e optam por documentar ou não as ações realizadas). Há também aqueles artistas que criam proposições para serem realizadas não por eles, mas pelos próprios “espectadores”. Ou ainda, numa versão radicalmente diferente, aqueles que contratam e pagam pessoas para performar suas propostas. Trocando em miúdos: tentar definir a performance não é apenas contraditório ou redutor, é mesmo impossível. Definir performance é um falso problema. Porém, claro, há fatores comuns entre peças de performance. Sobretudo a ênfase no corpo como tema e matéria. Me restrinjo a destacar algumas tendências gerais: o desmonte de mecânicas clássicas do espetáculo, a desconstrução da representação, o desinteresse pela ficção, a investigação dos limites entre arte e não-arte, a investigação das capacidades psicofísicas do performer, a criação de dramaturgias pessoais e/ou auto-biográficas, a ênfase nas políticas de identidade e em discussões políticas em geral através do corpo e as experimentações em torno das qualidades de presença do espectador.
 

Qual a relação entre performance e arte, já que performance, de certa forma, está ligada a manifestações distintas de arte? Até que ponto a arte é devedora de uma concepção de performance, e vice-versa?
A hibridação de gêneros é uma das principais características da performance. Aliás, esta possibilidade de fusão ampla, geral e irrestrita de materiais e procedimentos é uma das principais características não apenas da performance mas da produção artística contemporânea. No estudo da teórica de teatro alemã Erika-Fischer-Lichte, intitulado “O Poder Transformador da Performance” (The Transformative Power of Performance), ela propõe que desde o início dos anos 1960, a arte ocidental experimenta o que chama de “performative turn”. Segundo Fischer-Lichte, esta virada performativa inclui todos os gêneros artísticos -cujas fronteiras tornam-se mais fluidas - além de dar origem a performance art propriamente dita. Nas artes visuais, a action painting, a body art, as instalações e as obras de site specific são exemplos deste caráter performativo. Na música, experimentações em torno de temas como “música cênica”, “música visual”, “teatro instrumental” também são exemplos. No teatro, o interesse crescente pela desconstrução da narrativa e da ficção em favor da inclusão do espectador numa cena cada vez mais porosa é outro traço performativo marcante. De modo geral o “performative turn” aponta para a seguinte tendência: o crescente desinteresse pela noção de obra de arte enquanto resultado final do trabalho do artista a ser absorvido e interpretado pelo espectador e, em contrapartida, a crescente valorização do evento que inclui o espectador como elemento constitutivo.

Sua pesquisa parte do princípio de uma desestabilização na relação performer-espectador, principalmente de uma dicotomia bastante difundida da idéia de um performer ativo e um espectador passivo. De que modo seus trabalhos e pesquisas se propõem a buscar uma colaboração entre esses dois agentes?


Para te responder vou comentar resumidamente uma performance - “Ações Cariocas” - que realizei faz pouco tempo no Largo da Carioca [uma das praças mais movimentadas do Centro do Rio de Janeiro]. Para realizar a primeira “Ação Carioca”, levo para o Largo duas cadeiras da cozinha da minha casa, um bloco formato A2 e uma caneta pilot. Quando chego no local escolhido do Largo, tiro o sapato, coloco uma cadeira diante da outra, escrevo no bloco “converso sobre qualquer assunto”, levanto o cartaz e espero. No primeiro dia não fazia idéia do que iria acontecer. Minha motivação era muito clara: dialogar com meus concidadãos, tentar recuperar meu interesse e amor pela cidade onde cresci e que, por conta da corrupção política e da truculência criminosa, tornou-se uma violenta cultura do medo. Para reagir contra minha prostração e frustração resolvi ir para a rua, conversar com quem quisesse conversar comigo, criar uma performance em que a receptividade fosse a chave dramatúrgica. Fato é que, logo depois de erguer o cartaz, quase imediatamente depois, uma pessoa sentou-se comigo. E assim sucessivamente. Várias pessoas, todo tipo de gente, tantas conversas e assuntos que precisaria de páginas e páginas para descrever. No final de cada dia - permanecia cerca de quatro horas na rua e por vezes mais de uma hora com cada pessoa - estava eufórica, totalmente eletrizada, não exatamente pela ocupação de um espaço, mas pela abertura de uma dimensão, uma dimensão performativa; energizada pelo reencontro com a cidade e com a minha própria cidadania; energizada por podermos criar juntos, através do diálogo, e na medida de nossas micro-percepções e micro-políticas, novas possibilidades para nós, a arte e a cidade.

Falando sobre o conteúdo do módulo ´Dança e Performance´, existe uma aproximação maior entre performance e dança do que em relação a outras manifestações artísticas? Como o conceito de performance se insere no panorama da dança contemporânea?
Existe uma aproximação maior apenas na medida em que a dança sempre valorizou o corpo. O que não quer dizer que a dança tenha sempre valorizado um corpo que pensa ou um pensamento sobre criação de corpo e de mundo. Aqui lembro do teórico da dança André Lepecki, de seu trabalho voltado para o desenvolvimento de uma “dança-que-se-pensa”, uma dança capaz de reconhecer e rearticular as forças sociais, políticas e ideológicas que a condicionam. Desde os anos 1960, dançarinos e coreógrafos interessados em repensar as possibilidades da dança vêm se perguntando o quê os move, e não simplesmente como mover-se. Foi numa entrevista com Pina Bausch [bailarina e coreógrafa recém falecida] que li esta articulação esclarecedora. Muitos dos ensaios desde a criação da companhia em Wuppertal nos anos 1970, desenvolviam-se em torno de perguntas que ela fazia aos dançarinos que, para respondê-las, lançavam mãos de todos os seus recursos expressivos (se necessário inclusive a voz e a palavra). Bausch opta por trabalhar com dançarinos mais velhos, opinativos, corpos marcados, etnias diversas, agentes muito diferentes da etérea bailarina clássica. Corpos que, sob a direção de Bausch, absorveram e transformaram as lições de ballet para criar o híbrido “dança-teatro”, movimento que abriu caminho para as atuais pesquisas da dança contemporânea. Seja de maneira consciente ou não, a dança contemporânea é fortemente inspirada pela performance. A dança contemporânea propõe uma revisão radical da definição tradicional de dança - “mover-se ritmicamente acompanhando uma música e, em geral, seguindo uma seqüência de passos”. Em muita dança contemporânea não se encontrará passos, nem música e, talvez, sequer movimento (se compreendido exclusivamente como deslocamento no espaço). Em contrapartida, a materialidade dos corpos, o desvendamento das convenções cênicas, as éticas relacionais e as políticas de identidade serão temas possivelmente evocados através de pesquisas que podem envolver desde lingüística, novas tecnologias e arquitetura até física, biologia e filosofia. Como a performance sugere, não interessa neste momento definir o que é a dança contemporânea, mas perguntar em cada aqui e a cada agora, o que queremos que dança seja. Cada espetáculo será pois uma resposta momentânea para esta questão recorrente.

Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=652907

12 novembro 2012

Entrevista com Gilles Lipovetsky


O que é a felicidade? Para Gilles Lipovetsky, a sociedade contemporânea construiu uma nova percepção sobre o papel da felicidade na vida dos indivíduos. O seu significado passou a estar relacionado com a busca permanente de realização pessoal. Para o filósofo francês, as imagens de alegria e prazer reproduzidas pela publicidade e pelo cinema alimentam a ilusão de que é possível ser feliz o tempo inteiro. E foi essa busca permanente pela felicidade que tornou o consumo um elemento central da nossa sociedade, pois possibilita momentos de satisfação. “Esses pequenos prazeres vêm preencher uma necessidade muito maior de realização pessoal,” afirma.
Em entrevista ao Globo Universidade, Gilles Lipovetsky nos convida a pensar sobre essas questões e analisa temas presentes na sociedade contemporânea, como a moda e o luxo. Professor de Filosofia da Universidade de Grenoble (França), formou-se em Filosofia pela Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), tem livros e artigos publicados em diversos países, como “Os Tempos Hipermodernos”, “O Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas”, “O Luxo Eterno: da Idade do Sagrado ao Tempo das Marcas” e ” Cultura Mundo”.

Globo Universidade - Você poderia falar um pouco mais sobre a sua carreira acadêmica?
Gilles Lipovetsky - Eu tive uma carreira completamente tradicional. Em maio de 68, eu ainda era estudante de filosofia em Paris. Depois, me tornei professor de filosofia e permaneci professor toda a minha vida. Mas, paralelamente ao ensino, eu gostava de interpretar o mundo, por isso escrevia artigos, que se tornaram, posteriormente, livros. Portanto, eu sempre tive duas atividades, a de professor e a de escritor.

Há quinze anos, fui nomeado para fazer parte de um órgão público junto ao Primeiro-Ministro da França que fez com que eu não tivesse mais obrigações como professor. Mas, continuei o meu trabalho como escritor.

E o que é mais interessante é que eu tive uma formação de filósofo, mas ao mesmo tempo uma sensibilidade um pouco mais sociológica do que filosófica, o que deu uma mistura de filosofia com sociologia. Ser filósofo é muito mais abstrato e eu gosto de partir das coisas concretas da vida. Eu amo a observação, mas a observação não é suficiente para mim. Por isso, eu tento extrair um sentido do que eu observo. E esse não é um hábito filosófico uma vez que não parte da observação dos fatos.
 
GU - Você poderia nos contar brevemente a sua experiência no Maio de 1968?
GL - Eu era estudante e participei dos eventos de Maio de 1968, mas não de uma forma apaixonada, pois não acreditava na revolução. Por isso, era mais um observador do que um ator. E o choque de Maio de 68 teve mais repercussão depois, na década de 1970, quando as suas consequências foram percebidas. Eu analisei um pouco essas consequências no meu primeiro livro, "L’ere du vide. Essais sur Le individualisme contemporain", que mostra as mudanças nos comportamentos, na vida familiar, na sexualidade. Foi o impacto do espírito contestador que se refletiu na vida cotidiana e que a modificou bastante, foi uma mudança de uma sociedade conformista para uma sociedade muito mais livre.
 
GU - Em sua opinião, por que os indivíduos da sociedade contemporânea têm a necessidade de estar sempre em mudança, de sempre consumir produtos novos e eliminar os antigos? Por que as pessoas nunca sentem que suas necessidades foram preenchidas?
GL - Primeiramente, porque nós não estamos mais em uma sociedade baseada na tradição, de modo que não há mais nada que legitime a repetição. Em segundo lugar porque a mudança se tornou excitante e nos dá uma sensação de prazer, além de ser legítima e sem interdições. Os indivíduos buscam reverter suas insatisfações e tristezas por meio dessa busca por novidades e essa necessidade se tornou fundamental. Atualmente não podemos mais viver como no passado, dentro de uma mesma cidade, de um mesmo trabalho, com um mesmo marido ou mulher. Antes tudo era igual, hoje isso se tornou irrespirável para nós. Todos nós procuramos a felicidade, mas não a temos sempre. Como fazer nesse caso? Antigamente, as pessoas aceitavam esse fato, hoje, não. Então, nós tentamos, fazemos muitas coisas em direção a esse fim. Se estamos deprimidos, procuramos fazer uma viagem ou vamos ao shopping. Pensamos: “Talvez isso me fará bem” Esses são pequenos prazeres que certamente vêm preencher uma necessidade muito maior de realização pessoal.
Mas, essa realização pessoal, bem, nós não a encontramos sempre... No amor, é complicado... No trabalho, nem sempre estamos satisfeitos. Finalmente, as pessoas se olham e constatam: “Bom, não estou muito feliz com a minha vida, ela não é formidável. Meu marido me entedia, meu chefe me entedia também, meus filhos estão com problemas na escola... O que fazer?”
O que sobra são os pequenos prazeres trazidos pelo consumo. Assim, pode-se dizer que são mudanças no consumo. Mesmo assim, essas pequenas coisas nos trazem um pouco de agitação, de animação na vida que acabam dando um sentimento de que as coisas não se repetem, apesar de tudo. Mudamos coisas na nossa casa, compramos novos produtos, um carro novo, um perfume. São pequenos elementos que nos dão momentos de pequeno prazer e que vêm, sem dúvida, substituir uma procura muito mais intensa de satisfação profunda. Mas essa satisfação profunda, nós não a temos sempre. Temos momentos de grande satisfação, mas que são raros. Não podemos viver um amor total ou em um emprego que nos agrada totalmente. Isso é muito bom no cinema, mas, bem, na realidade é diferente. É possível em pequenos momentos quando vivemos momentos magníficos, mas que são curtos. Na vida, sobram os pequenos prazeres que vêm preencher a necessidade de uma grande felicidade.
GU - Em sua opinião, por que nossa sociedade está sempre em busca de um modelo de felicidade ideal que dificilmente será alcançado?
GL - A felicidade pode ser alcançada em pequenos momentos da vida. Não podemos estar felizes o tempo inteiro, até porque dependemos dos outros para isso. Nós sofremos, por exemplo, porque a pessoa por quem estamos apaixonada olha para outra pessoa, porque nossos filhos nos trazem problemas, porque nosso chefe é cruel. Nós não podemos fazer nada quanto a isso, são questões que vêm do exterior. Nós não podemos controlar a felicidade, porque não temos como controlar os outros. Controlamos alguns aspectos, mas nem tudo! A felicidade, muitas vezes, nos escapa. Se perdermos alguém que amamos, como fazemos? São momentos que fazem parte da vida e que são impossíveis de eliminar.
O sofrimento faz parte da vida e não pode ser ignorado. O problema é que hoje o sofrimento não tem mais sentido, não existe mais razão para isso. Antes, havia um sistema, como a religião, que dava sentido ao sofrimento, mas hoje é sempre visto como um mal. Apesar de a modernidade ter facilitado alguns aspectos da vida, diminuindo essa percepção, também trouxe muitas dificuldades.
Atualmente, podemos observar uma espiral da taxa de depressão entre as pessoas. Existem duas razões para isso. Primeiramente, a sociedade se tornou muito mais incerta, temos menos repetição, tudo muda o tempo inteiro, temos mais competição de forma que as pessoas ficam mais desestabilizadas. Além disso, não estamos mais habituados a suportar momentos difíceis. Quando não estamos felizes, achamos que existe algo de errado com a gente, pois vivemos em uma sociedade publicitária que nos mostra por meio das propagandas, das celebridades e do cinema imagens de felicidade.
Hoje, por exemplo, as crianças são criadas para não sofrer. Antigamente, elas eram criadas de uma forma mais dura para a sua própria proteção, para que elas se tornassem mais resistentes. Hoje, os jovens se tornaram mais frágeis e o aumento das taxas de suicídio reflete um pouco isso. Os indivíduos contemporâneos são criados para serem felizes. Não podemos mais sofrer.
 
GU - Quais são as vantagens e as desvantagens dessa sociedade hipermoderna baseada no consumo excessivo?
GL - As vantagens é que hoje vivemos muito mais tempo e com muito mais saúde. Além disso, o consumo oferece uma abertura do mundo, possibilitando que as pessoas viajem mais e vejam coisas que jamais viram. Graças à internet, as pessoas podem conhecer mais o mundo. Paralelamente, em uma sociedade onde há um forte consumo generalizado, a violência, mais especificamente, a violência política tende a diminuir de forma que o consumo pacifica o espaço público. E isso é um grande benefício.
Já os inconvenientes é que, para muita gente, a vida se tornou caótica. Busca-se o tempo todo coisas novas que, ao final, não dão satisfação. Cada vez temos mais coisas, mas o que não significa que estamos mais felizes. Temos mais música, filmes, viagens, mas as pessoas estão mais felizes? Imagino que não.
 
GU - O que é a hipermodernidade? Como você desenvolveu o conceito?
GL - Como desenvolvo o conceito no meu livro “Os Tempos Hipermodernos”, a definição é um pouco longa. Mas, em resumo, é a ideia de que a modernidade não possui mais alternativa. A modernidade baseada na democracia e no mercado não têm mais um contra-modelo. Antigamente sim, a modernidade se construiu contra a tradição e, ao mesmo tempo, a modernidade criou sua própria auto-crítica interna. Falava-se que a democracia seria substituída pelo socialismo e que o mercado seria substituído pelo comunismo. Atualmente, ninguém mais pensa em substituir a democracia. Criticamos o mercado, o capitalismo, mas o que colocaremos no lugar? Não há nada.

GU - Quais são os pensadores e as experiências pessoais que o influenciaram durante o processo de construção do conceito de hipermodernidade?
GL - A transformação do capitalismo, o fenômeno da globalização e o fim das grandes paixões políticas. Durante dois séculos, a democracia suscitou paixões políticas muito fortes que, atualmente, desapareceram. As grandes paixões das pessoas são as amorosas e consumistas. A política ainda é importante, mas não possui mais uma representação forte na vida dos indivíduos. Assim, essa é uma nova face da modernidade que começa. Na modernidade clássica, a política era central, a política e o Estado prometiam mudar o mundo. Hoje, se um político diz que vai mudar a vida das pessoas, todo mundo vai rir. Ninguém acreditará nele, porque atualmente o que muda a vida é o capitalismo. É no nível individual que a mudança acontece. A política muda poucas coisas e as pessoas não acreditam mais e não querem uma revolução.
Atualmente, cada um procura as suas próprias soluções. E não é necessariamente negativo que hoje haja armas pessoais que nos possibilite fazer projetos e realizar várias coisas. Isso é muito dinâmico. O problema é que muitos não as têm. Essas pessoas sofrem com o desemprego, a pobreza, mas elas não possuem recursos para construir sua própria vida. Então, temos uma contradição, porque na sociedade moderna, cada indivíduo é responsável pela sua vida, mas essas pessoas não possuem meios para mudar a vida delas. Antigamente, não havia essa contradição, pois se acreditava que era o destino. Atualmente, somos nós que construímos nosso destino, mas quando eu não tenho mais trabalho, quando eu sou jovem, o que eu posso fazer? É uma contradição terrível.
 
GU - Ao mesmo tempo, o consumo de produtos de luxo aumentou consideravelmente nos últimos anos. Por que o luxo encanta as pessoas?
GL - Porque o luxo oferece um universo de beleza e de qualidade. O luxo é um fenômeno que traduz um desejo de qualidade de vida e de consumo de produtos com mais estilo e beleza e não necessariamente voltados para a sobrevivência. O crescimento desse consumo mais estético significa que a maioria das pessoas procura uma experiência. As pessoas, por exemplo, não querem só comer, elas querem ir a um restaurante. As pessoas não vão mais a um hotel somente para dormir, elas vão a um hotel que deixe lembranças, pela sua beleza e originalidade. Acho que isso vai se traduzir em um novo tipo de consumidor mais estético que busca no consumo as emoções. Assim, é uma procura pelo prazer, mas um prazer refinado, estético e que ganha cada vez mais uma fração maior da sociedade. As mulheres, atualmente, querem perfumes, cosméticos, todas querem. Todos desejam viajar, ficar em bons hotéis e ir a bons restaurantes. É uma promessa de felicidade. São coisas que nos trazem experiências e que nos fazem viver de uma maneira muito mais intensa.
 
GU - Recentemente, os problemas ambientais influenciaram uma nova forma de consumo baseado no discurso da sustentabilidade. A partir do seu conceito de hipermodernidade, como o senhor compreende esse fenômeno?
GL - Sim, é um novo fenômeno de consumo, consumo de produtos verdes e orgânicos. Quando perguntamos para as pessoas, todas dizem que são favoráveis. O problema é que estes produtos ainda são caros. Mas, de fato, pode-se dizer que há uma certa consciência das pessoas sobre a fragilidade do planeta, mas que, na realidade, ainda representa pouca coisa.
Mesmo assim, isso se traduz em um novo tipo de consumidor, pois, apesar desses tipos de produtos estarem na moda, o seu consumo representa o prazer e, ao mesmo tempo, a responsabilidade com o meio ambiente. Há uma mistura dessas duas coisas. Antigamente, a moda não se preocupava com questões ambientais e com a preocupação com a responsabilidade na hora de consumir. Atualmente, há uma responsabilidade social e ecológica.
 
GU - Em seus livros, você também comenta sobre a emergência de um capitalismo cultural. Nesse sentido, o que o turismo representa para o capitalismo?
GL - O turismo se traduz em um consumo mais estético que procura novas experiências e sensações. O turismo é a procura por novas sensações, novas paisagens, novas descobertas. E esse fenômeno não vai parar. Antigamente, as pessoas, nas férias, iam sempre com sua família para o interior. Hoje, elas querem visitar novos lugares, há uma necessidade de sair do cotidiano. Podemos dizer que há uma democratização pelo gosto estético, pelo consumo de coisas somente pelo prazer. Pode-se dizer que há dois tipos de turismo. Um turismo mais conformista que são as viagens organizadas. Como a maioria das pessoas não passa um tempo infinito nos lugares, elas querem conhecer os pontos turísticos mais célebres. Em Paris todos querem conhecer o Louvre, a Torre Eiffel. Mas há também um turismo menos ortodoxo, pessoas que constroem suas próprias viagens e que usam a internet para isso.
Então, é possível ver essa tendência estética, pessoas que consomem somente para o seu prazer. O turismo oferece uma experiência completamente desconectada do cotidiano e da rotina. Quando você é um turista, é como se você estivesse dentro de um filme. É uma possibilidade de sair da vida real. É um tipo de consumo voltado unicamente para o prazer.

Fonte: http://redeglobo.globo.com/globouniversidade/noticia/2012/10/entrevista-gilles-lipovetsky-aborda-o-papel-do-consumo-na-atualidade.html

Os Tempos Hipermodernos, Download:
http://www.4shared.com/office/7-1v13I5/os_tempos_hipermodernos.html