24 novembro 2008

Dramaturgia - Vapor
Pensar questões de dramaturgia na dança feita hoje nos leva a perceber a impossibilidade de síntese em meio à pluralidade de modos de organizar, compor e representar com o corpo, que dizem respeito ao mundo de hoje. E cada modo, podemos pensar, fala a partir de uma visão ou recorte próprios da percepção deste mundo,seja ele conceituado como ambiente ou sociedade.Assim, o processo de dramaturgia, ou seja, de dar uma certa ordem ao material criado para o olhar dos outros é sempre variável. No caso de Vapor (criação de Helena Bastos Raul Rachou,e co-dramaturgia de Vera Sala, 2007) a dramaturgia se constrói inicialmente na articulação de 3 diferente olhares que partem de um mesmo ponto: o corpo no espaço-tempo é criador de novos e outros sentidos, é um corpomídia, estando em movimento ou não. A dramaturgia nesse modo de conhecer e tratar os signos é algo dado "na carne", ou seja, pelas informações processadas e incorporadas e suas representações relacionadas à presença física do performer (ou bailarino-ator, ou intérprete-criador, ou como quisermos chamá-lo para situá-lo como artista-pesquisador). A dança em Vapor é uma relação entre poderes de manipular e de ser manipulado. É o que alguns filósofos, desde Michel Foucault, estão chamando de biopoder, como nos explica Peter Pál Pélbart no livro "Vida capital: ensaios sobre biopolítica" (São Paulo, Ed. Iluminuras, 2003,) em diversas esferas da sociedade atual. Assim, temos uma primeira dramaturgia que se constrói no jogo de manipulação entre Raul e Helena. Seria fácil pensar algo como que um sacrifício daquele que é manipulado, e repetir a relação entre homem dominante e mulher dominada (e pensar assim não seria incoerente). Mas existem outras coisas aí. Numa breve conversa, Vera esclarece que se trata da configuração de um corpo-objeto a ser manipulado, o que já nos leva a um modelo não-representativo de sentimentos, mas de ações e estados. Para este corpo-objeto, como nos contou Vera, as espirais e as quedas são mais importantes que as expressões faciais e as intensas respirações que facilmente emergem deste tipo de trabalho corporal (a cabeça, aliás, sede e chave deste tipo de representação do humano é não mais que um ponto de contato e ignição para o movimento apassivado, uma cabeça-objeto). As relações tendem a se organizar por formas "vaporosas", com base no treinamento do pilates, aikidô e de técnicas de dança como a de Martha Graham ou a do tango. Por isso, aqui se pode pensar também em outras categorias para o desenrolar das ações, com cada célula de movimento pretendendo construir um sentido a ser refeito, repetido. Não convém pensar em clímax, mas em clímaxes, por exemplo. A estrutura dessa dramaturgia do espetáculo que abriga a dos corpos e sua células de movimentos é também permeada por apagamentos. A obra é inacabada e expõe sua precariedade, sua abertura para o acaso. Na dança, pelo menos desde os experimentos em associação de Merce Cunnigham e de John Cage, a dança-teatro de Pina Bausch, ou ainda do teatro-paisagem (de imagens) de Robert Wilson, temos a configuração de outras formas, poéticas e metodologias para as artes performáticas. Pensar a dramaturgia deste corpo e desta cena tem a ver, dizendo mais uma vez, com o recorte e as re-combinações que serão feitas, de acordo com a necessidade de discussão dos pontos de instabilidade de cada corpo, de cada coletivo. Para além das fronteiras texto-cena, teatro-dança-performance, artista-público, processo-produto, dramaturgo-dramaturgista, cabe à dramaturgia levantar, dar verticalidade e visibilidade a diferentes possibilidades de criação. Para além do bem e do mal.
Nota: 1.Para conhecer mais sobre o conceito copormídia, leia o texto "Por uma teoria do corpomídia" no livro, O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Ed. Annablume, 2005.