18 novembro 2009

dramaturgia na dança
as relações teatro/dança em zona de transitividade
resumo apresentado no X Seminário de Pesquisa e Pós-graduação
X SEMPPG
- UFBA
Sandra Corradini


O diálogo entre dança e teatro não é recente. Também é sabido que as discussões relativas às delimitações epistemológicas acerca de um e de outro campo do conhecimento escapam à lógica das simples relações. No que tange à dramaturgia, muitas delas mostram-se permeadas por uma problemática que parece estar vinculada ao diferencial entre as informações já sistematizadas por estas distintas áreas: A dramaturgia na dança, por se referir a uma área em crescente expansão ainda pouco explorada academicamente ao passo que no teatro diz respeito a uma área que abarca um vasto campo conceitual há muito investigado. O objetivo deste artigo é deslocar a hierarquia nas relações entre teatro/dramaturgia e dança/dramaturgia e através de uma perspectiva coevolutiva entre dança e teatro compreender a “instauração” da dramaturgia na dança como síntese emergente dos processos relacionais entre ambos inseridos em zona de transitividade. Lugar transitório onde co-operam dois ou mais campos para configuração de sínteses, zona de transitividade é aqui discutida como um lugar onde teatro e dança coadaptam-se com intenção colaborativa no processo cooptativo de seleção das informações de ambos os campos, ajustando suas lógicas operativas para configuração de sínteses. Reiterantes da interdisciplinaridade, as trocas informativas implicadas nas relações teatro/dança realizadas em zona de transitividade propiciam a ininterrupta configuração e complexificação de seus campos e ao mesmo tempo lhes instauram especificidades.


Palavras-Chave: Dança, teatro, dramaturgia, zona de transitividade, coevolução.


Fonte: http://www.semppg.ufba.br/imp_aluno_pos.php3?tipo=aluno_pos&cpf_aluno=13006031865&cpf_coord=02472633890


13 julho 2009

Impressões digitais: "itens de primeira necessidade"
por Sandra Corradini




Dias e dias Pós–Marcelo se passaram desde o “Itens de Primeira Necessidade” na terceira maior metrópole brasileira. Meu corpo-memória em São Paulo ativa outro espaço, ambiente, contexto, a cidade de Salvador. É domingo, doze de julho de 2009. Visualizo o Corredor da Vitória, em cima da terra o Goethe e dentro dele o teatro. Fora dele, sua parede externa amarela delimita seu espaço a poucos passos da imponência do hotel para onde caminho do outro lado da rua. Nesta paisagem ainda inclui-se a igreja na praça com o enorme urso de pelúcia pendurado enforcado na lança da grade de ferro visto ao fundo na foto bem como o museu e sua porta de entrada aberta a um degrau da calçada, o condomínio com sua fachada pós-moderna clean e preta, e o suor absorvido pelo compensado quente que inviabiliza acesso à construção bem próxima ao corpo que insiste em se lançar contra a parede dura. A dona da loja transparente de presentes isola-se atrás da porta fechada de entrada e o cabelo baiano transfigura-se em frente ao salão de beleza. O posto/Mac e o balão e o carro são coloridos, mas o beco ao lado da banca de revista que abriga um rosto-cabeça-cérebro não identificado à frente do backlight da Vivo é sombrio. O corpo scorceseano jogado “After Hours” no asfalto ao lado da caçamba estacionária tipo “brook” está tal qual o corpo adormecido sonhando sentado encostado no muro da casa vazia. Há um outro corpo que ainda respira em pé no entroncamento onde vias confluem à praça central, outro que se flexiona contra o desejo que não acende mais e outros dois que se (i)mobilizam na sarjeta, frente a frente, plastificados, a um passo do ônibus e do abismo. Mas ainda há não sei quantos outros corpos em outros lugares inscritos no corpo-memória de cada ser que observa, fala, grita, ri, agride, comenta, colabora, se aproxima, desvia, rejeita tais ações e são vistos.
Embrulhada feito pão quente em papel kraft, atravesso solitária a rua em direção entre arte e vida. Sento-me ao lado esquerdo da árvore, de costas bem em frente ao hotel, de onde avisto um carrinho de cachorro quente ou de pipoca bem em frente ao portão principal da escola do outro lado da rua. O vendedor parado me olha e percebe que eu o olho parada. E novamente eu o olho, ele me olha, e nós, aparentemente parados, continuamos nos olhamos. “Você não está passando bem?”, cuida-me uma voz que anda atrás de mim, que, sem resposta, é levada ao vento, vitoriosa, do centro à praia, onde todos os dias o sol se põe atrás do mar. “Ela está olhando pra mim”, pronuncia-se o vendedor que me olha do outro lado da rua. Próximo dele, Marcelo clica a foto, congelando vontade e seu contrário, tensionados em meu corpo que resiste cinético, sinestésico, sintético, estético, performático, investigativo, experimental.
No início, é ou parece ser simples: o corpo move-se pela escuta e seleção de forças opostas que ele próprio elege ao se inserir num campo onde a regra é confrontar automatismo inerente ao desejo que o move versus resistência à configuração deste corpo autômato e criar espaço para novas investidas em diferentes direções e sentidos para o movimento. Evidenciam-se as relações de poder e linhas de fugas no próprio corpo performático, tensionado, percebido, configurado e reconfigurado a cada percepção e impulso na sua relação com o ambiente. A verticalização na ação ocorre ao longo dos aproximados quarenta e cinco minutos da ação performática, em camadas, na medida em que os princípios configuradores da relação forma/conteúdo investigada são estabilizados no corpo. Somam-se, então, a seleção e a aleatoriedade das reverberações incidentes no momento da ação advindas dos estudos realizados em processo de ensaio bem como as associações produzidas pelo corpo e no corpo entre estes e as percepções do ambiente em que este executa a ação. Som, luz, calor, odor são estímulos para a ação performática; esta, resultante do processo de construção/organização das informações presentes e das que atravessam o corpo na sua relação com o ambiente, ocorrido em tempo real.
“Você não está passando bem?”; ecoa novamente a mesma frase, pronunciada por uma outra voz, numa modulação sonora distinta, mas procedente no mesmo lugar. O corpo performático, como num espasmo reflexo, a seu tempo, inclina-se e inicia uma torção a fim de reconhecer a fonte: primeiro, movimentam-se os olhos e, seqüencialmente, a cabeça, a coluna cervical, a dorsal, a lombar, vértebra por vértebra, uma a uma, e, por fim, seguindo a proposição decrouxniana, o quadril, desencadeando o movimento de todo o corpo. De súbito – a seu tempo, repito - num giro aproximado entre 270º e 360º, o corpo encontra-se de quatro, num devir canino, prato cheio para quem quiser correlacionar sem muito esforço homo sacer àquele ser indesejável, inclassificável, cuja vida nada vale, posto à margem na calçada, esquecido, que resiste inserido numa zona de indistinção. O corpo performático percebe/atualiza o odor de fezes caninas até então não identificado, não resistindo à ascaridíase - popularmente conhecida como lombriga, que se instala em meio à sujeira da rua, que obviamente foi eliminada posteriormente por drogas medicinais devastadoras.
A ação, sem dúvida, não termina aí. Ela expande-se e segue sem fim, num processo investigativo ininterrupto que poderia indiferentemente prosseguir por uma hora, duas, três ou mais. Entretanto, interrompida pela onipotência do tempo, levanto-me e caminho para o Goethe com a expectativa do encontro final transitoriamente conclusivo.
Impressões digitais dos meus “Itens de Primeira Necessidade”: Ação, construção, informação, significado, sistema, ambiente, corpo. Corpo-objeto, manipulado, descartado e deixado no canto no fundo da sala. Corpo-tapete, pesado, desajeitado, sujo, sem valor, em desuso, jogado, apodrecido, embolorado, rejeitado, indesejado. Corpo, corpo, corpo ...
Marcelo Evelin, agradeço-lhe imensamente a oportunidade de vivenciar esta experiência única; Jacob, desculpe-me por te jogar no chão assim, tão desprezadamente; Pessoas – Leonardo, Mab, Saulo, Alê, Líria, Fernando, Iara, Duto, Rita, Thaís, Lenira, Lucas, Ivan, Cipó, Enoque, Gil, Hudson, Alexandre, César e Lucas - , muitíssimo obrigada a todos. Será que eu esqueci de alguém?


Ressonâncias Baianas/Marcelo Evelin: http://www.demolitioninc.blogspot.com/

Eu, a Pipoca e os Urubus
Escrita etnográfica realizada a partir de pesquisa de campo na Igreja São Lázaro, Salvador/BA por S a n d r a C o r r a d i n i


Manhã. Caminho com passos apressados em direção à igreja distante nem sei quanto tempo de casa. Há sol. Atrasos de segunda são bastante comuns nos dias de hoje. Pessoas, diferentes de mim, caminham na rua em direção contrária. Descuidadas de seus finais de semana, transpiram seus dissabores adquiridos em calóricos pratos mal digeridos ao movimento das pernas que as deslocam neuróticas com a ilusão de que tudo novamente poderia começar do zero: Dia, dieta, distorções e novelas a bordo.
Caminho. Subo e desço ladeiras e montanhas de Salvador. Reconheço lugares por onde já passei, mas ainda restam dúvidas se estou no caminho certo. Esqueço. Deixo que me meu corpo se ache no rumo e no prumo e continuo indo em frente, sempre. Um senhor me responde: É logo ali. Na mangueira, você quebra à esquerda. Que horas são? Resisto em sabê-las... Nada adianta o tempo que as coisas têm.
Caminho. A rua é uma longa estrada em curvas de “S”, Sandra, que se dissolve num simples olhar que suspeita poder ser devorado pelos estômagos famintos dos urubus em busca de comida podre. Assombradamente ingênua, corro uma fuga em saltos esdrúxulos, tal como meus únicos companheiros ali presentes. Eu, puro devir. Sou urubu. Há asfalto e ninguém mais. Olho para trás, eles me olham. Olho para o lado e ele, outro, urubu sobre o muro, insiste em me dizer que eu ainda posso ser uma boa pedida. A curva em “S” não se acaba nunca, meu Deus! Ando respirando... do desesperado ao controladamente nervoso. Adiante, avisto carros, bandeiras e pessoas. Continuo andando. Mas já estou lá e não mais aqui. Quero chegar.
Cheguei. Tão logo lá eu me achava, sugeriram-me o banho. Alguns, como eu, estavam ali em busca de algo que lhe proporcionasse vivência, sensação e uma dose a mais de conhecimento. Observadores à distância.
O cenário pintado em cores defronte à branca Igreja de São Lázaro ambientava uma atmosfera suspensa e embebida em uma realidade não-cotidiana, onde pessoas e pipocas misturavam-se ao som das pequenas tiras de papel-manteiga movidas pelo vento, atraindo-me o olhar para o vermelho e branco das bandeiras desbotadas, intercaladas aos milhares sobre nossas cabeças, abaixo do céu azul. Algumas mesas com toalhas de rendas e cestos, e, ao lado, seres de vida transfigurados em ilustres personagens da fé baiana. Ora em pé, ora sentados, aguardavam ativos os devotos que por ali passavam para reafirmarem suas crenças sagradas.
Não reconheço ninguém naquele terreiro a não ser meu professor e os dispostos alunos que, como eu, decidimos, corajosos e compromissados, deixarmos nossos berços para empreender aquela aventura habitada pelo desconhecido.
Atravesso a rua e adentro aquele espaço em direção ao moço de azul, sentado em primeiro plano numa cadeira de plástico, tal qual doutor e dono de si perante os demais que, assim como ele, estavam a serviço da ordem do Senhor. Sou chamada: Venha cá! Uma voz feminina me interrompe o trajeto planejado, levando-me a mudar o foco a caminho do banho pretendido. Coloco-me à sua frente pronta para receber em meu corpo as tais pipocas que me haviam tirado tão cedo da cama.
Fecho os olhos, pés paralelos apoiados no chão e em posição ereta, permito que aquela senhora me abra os caminhos. Fecho os olhos e escuto: Deus te proteja, Deus te abençoe, Deus te abra os caminhos, Deus isso, Deus aquilo, Deus te livre de acidente, te livre de desastre de carro, de caminhão, avião, atropelamento, de queda, de susto, de afogamento, de indigestão, de vingança, inveja, fome, desordem, doença, tristeza, sapato apertado, pernilongo, espetáculo ruim, samba ruim, pagode ruim, comida ruim, cheiro ruim, transporte ruim e de tudo que há de mais ruim em meio a tantas desgraças que podem haver de acontecer comigo um dia. Curiosa para ver sua prece acontecer, possivelmente decorada há anos, entreabro os olhos durante sua fala e alcanço, através de sua boca, seus dentes. Todos eles, com obturações prateadas, moviam-se ao ritmo constante do abrir e fechar de sua mandíbula em sintonia com a emissão de suas palavras. Primeiro, foram os galhos de aroeira que varreram meu corpo: frente-trás e debaixo dos braços, de cima para baixo e de dentro para fora, limpa-se as impurezas depositadas na superfície e sob a pele. Depois, as pipocas, na seguinte ordem: ombro, tronco e cabeça: Duas vezes, sobe e desce, sobe e desce pelas laterais ao longo dos braços abaixados, da cintura à orelha e, por fim, após uma pausa sobre o topo da cabeça, jogar as poucas pipocas que restam nas mãos depois do final da prece. Todas as pipocas, que eram muitas, encontravam-se agora no chão, compondo, entre as pequenas pedras acimentadas do terreno, um painel-piso-suporte que também servia para aterrar aquelas almas. Inclusive eu.
Aproximo-me do cesto sobre a mesa montada com engradados de cerveja amarelos após o banho ritual. No cesto há pães, folhas e algumas moedas soltas. Deixe sua contribuição aqui, disse-me apontando o cesto aquela senhora vestida com rendas e, sob elas, uma longa saia rosa de cetim. Observo suas guias coloridas, seu ojá em tons marron-terra e seu rosto-corpo à espera de um ou dois reias apenas. Tiro dos bolsos minha contribuição já reservada, destinada a aquele fim, depositando-a no local que me foi indicado. O moço de azul que anteriormente estava sentado na cadeira de plástico, agora se encontrava sentado em um dos degraus da escada que interligava terreiro e igreja, e sorri para mim.
Sem ninguém na fila de espera para o próximo banho, curiosa, permito-me perguntar-lhes: Vocês estão sempre aqui? Todas as segundas a partir das seis, responde-me a mulher. Aproxima-se sua amiga igualmente vestida, porém, com saia verde, também de cetim. Seu ojá era de um amarelo ouro e suas guias, três, penduradas no pescoço, coloridas em cores que naquela hora eu preferi não me aprofundar.
Quer jogar búzios? Vocês jogam? Sim, mas não aqui. Nós vamos na sua casa. Mas eu não fico lá. Então, anota o meu endereço. Tem coisa aí pra limpar. Entre perguntas e respostas, iam organizando-se com papel e caneta e fazendo-me escrever seus nomes, os nomes de suas ruas, os números e seus telefones. Uma chamava-se Janete e a outra, a de saia verde, Vera. Prazer, retribui a ambas. Dirijo-me a Janete - ela pareceu-me mais íntima: Quanto vocês cobram? Cinqüenta reais. Você é daqui? Não, mas estou morando aqui. É, onde? Federação. Qual sua função? Eu danço. Mas é dança do ventre, é?, indaga-me Vera, aproximando-se. Não, é dança contemporânea. É que a gente tem uma amiga que faz dança do ventre. Curiosas, tal como eu, estendemos nossa conversa por um tempo indeterminado. Sem pararem em um lugar fixo, rodearam-me em perguntas, assim como eu, à espera de alguém que se aproximasse para o próximo banho de pipoca.
Começa a missa. É provável que seja a missa das oito, pensei. Observo um sino pintado de verde-bandeira na torre da igreja à esquerda, localizado ao alto, à minha frente, e constato que, por uma corda azul de naylon que dele se desprendia, alguém poderia fazê-lo soar da antiga janela verde-bandeira que ficava uns quatro ou cinco metros abaixo. Meu olhar percorre as paredes da igreja em busca de suas peculiaridades. Avisto cortinas azuis da cor do céu através da janela e as largas paredes da igreja na torre à direita. Procuro imaginar o que há lá dentro. São duas janelas idênticas, eqüidistantes em relação a uma grande porta de madeira também verde-bandeira central e aberta, compondo uma arquitetura aos moldes clássicos quase próximas da perfeição. São Lázaro, resguardado das intempéries do tempo, guardava do alto o terreiro, ao centro, bem acima da entrada principal. Mar ao fundo, horizonte, imensidão.
Janete, ao meu lado, segura-se como que pendurada a uma cruz de metal disposta a sua esquerda, completando a imagem “mesa, cesto, engradado, cadeira, cruz, aroeira, algumas flores e palmeira”, apoiada com sua mão direita sobre a cintura à espera da foto, do próximo banho, do novo cliente. Vera, do outro lado da mesa, fumava. Flash de máquina e de memória. Pomba-gira vestida de branco é uma outra possibilidade.
Pai Ricardo de Oxalá se aproxima e se apresenta a mim com um copo de munguzá na mão. É como canjica?, perguntei-lhe desinformada. É, todos aqui têm que tomar. É pra limpar. Pode tomar. E ofereceu-me o seu próprio copo. Experimentei o mungunzá. Doce, baiano e saboroso, com grãos que, para mim, sempre me pareceram a um grande dente do ciso muito mole e cozido. Toma e reza um Pai Nosso para ser abençoada, aconselha-me Pai Ricardo. Acato suas instruções e rezo com olhos fechados um Pai Nosso incompleto. Pai Ricardo também joga búzios e faz caridade. Disse que ia fazer para mim... A caridade.
Pai Ricardo de Oxalá é negro, quase preto, bem mais alto que eu, que Vera e que Janete também. Tem entre 1, 80 e 1,90 de altura, enorme. Arrisco-me em dizer que sua configuração avolumada causa a impressão de estar consideravelmente acima de seu peso ideal. Pai Ricardo é o homem da blusa azul que sorriu para mim, sentado no degrau da escada. Seu semblante de menino não revela os quinze anos além dos vinte e tantos que já tinha quando começou a trabalhar naquele terreiro. Desde então, acorda todas as segundas às três da madrugada, toma o ônibus e vai para o terreiro arrebanhar novos clientes para sua semana. Tem clientes em Salvador, no Rio, em São Paulo e outros espalhados pelo Brasil. Às vezes, visita-os a trabalho. Sua rotina de trabalho acontece em sua casa, próxima ao aeroporto, do lado oposto da cidade. Pai Ricardo de Oxalá, grande observador das imediações daquele terreiro.
Pai Ricardo vira-se e dá um passo à frente em direção a um possível cliente que se aproximava. Com os galhos de aroeira na mão, inicia outro ritual da pipoca: Mão esquerda encostada na testa do cliente, permanecer parado por alguns instantes com os olhos fechados. Diferente de Vera, com pipocas nas mãos, continua: de cima para baixo, da cabeça para os ombros, dos dois lados, desce e sobe, desce e sobe, duas vezes, terminar no topo da cabeça e jogar para o alto as pipocas que restarem nas mãos. Pegar os galhos de aroeira, colocá-los sobre a cabeça do devoto e pausar para destacar a prece: Deus te livre disso, Deus te livre daquilo e daquilo outro. Pegar a aroeira nas mãos: Frente-trás e debaixo dos braços, de cima para baixo e de dentro para fora. Os galhos varrem o corpo daquele homem, provável cliente, limpando-o das impurezas depositadas na superfície e sob sua pele. Afasto-me desconcertada por não saber se podia ou não ficar ali ao seu lado. Sento-me à beira da calçada e escrevo.
Somos chamados. Levantamos todos, eu, os alunos, um a um. Chovia. Caminhamos cada um em seu próprio tempo, em passos lentos, em direção à mesa do bar nem vinte metros de onde estávamos. Sentados, com caderno, caneta e registros caóticos daquela vivência única, falamos e lemos nossas impressões anotadas a punho e em silêncio. Quase todos.
Fecho o caderno, levanto-me da cadeira e vou para o carro, que até hoje não sei de quem é. No meio do caminho, páro e olho para trás. Nenhum ali me observa. Mas eles ainda estão lá, suspensos na terra, dentro daquele cenário, vivos. É cena de filme, comento. Ao meu lado, Fernando acrescenta: É uma cena cinematográfica.
Vou embora com Fernando tomar café e organizar minha jornada da semana. Aulas na graduação. Nesta semana haverá Páscoa e feriado. São apenas dez e meia da manhã.

15 maio 2009

Temporalidade em Dança
de Fabiana Dultra Britto
r e s e n h a
J u s s a r a S e t e n t a
O título do livro já anuncia a complexidade argumentativa e a rede de informações, ideias, conceitos e constatações trabalhada pela autora. Há uma preocupação premente em articular ideias próprias às ideias de demais autores, o que fortalece a noção de coautoria e compartilhamento de propósitos. Já no índice é possível observar outro modo de organizar as partes do livro, numa demonstração de que importa propor exercícios de entendimentos e compreensões aos leitores, exercícios esses regidos por nomeações metaforicamente especializadas e cuidadosamente apresentadas ao longo do corpo textual.
Da Carta das Des/Intenções ao Canteiro de Obras se chega à discussão do Como é o que Existe para encontrar-se com a apresentação de argumentos que demonstram a Trajetória Histórica não é um Processo Evolutivo; que A Dança é um Sistema Coevolutivo; que a Evolução é outra História e, a proposição de Exercícios de Equivalência. Em complementação às ideias em discussão, a autora acrescenta nos anexos títulos e breve comentário de publicações nacionais de livros de dança preocupando-se em apresentar os autores aos leitores. Ainda, expõe bibliografia separada por temas argumentativos num zeloso cuidado acadêmico com aqueles interessados em dar continuidade aos estudos lá apresentados.
Todo o trabalho tem o propósito de discutir a questão da temporalidade na dança oferecendo novos parâmetros que venham colaborar para estudos no campo da historiografia da dança. Para tanto, constrói mapa investigativo com vistas a indagar como o modelo teórico da historiografia pode conseguir explicar “o sentido evolutivo do processo de transformação histórica da dança [...]” (p.13). O diálogo com os autores Ilya Prigogine, Daniel Dennett, Richard Dawkins, Helena Katz, Jorge Vieira, dentre outros, colabora na organização do pensamento da autora acerca do modo como a história da dança vem sendo apresentada aos interessados em dança, que inclui aqueles que estão nas universidades, nas academias, nos grupos artísticos, em ONGs, grupos comunitários e instituições de ensino formal. São inúmeros os interessados, mas ainda desproporcional aos que publicam suas ideias e compreensões da história da dança do Brasil e do mundo no nosso país.
A aproximação desses teóricos permite à autora tecer uma trama argumentativa dialógica e questionadora da realidade das informações históricas da dança no Brasil ao indicar que é possível trabalhar com o entendimento da história enquanto processo em vez de entendê-la enquanto acontecimentos pontuais que expressam relações frágeis de espaço e tempo. Ao invés de decalcar conceitos e transportá-los para propósitos discursivos, a autora relaciona entendimentos, compreensões, fatos de dança com concepções teóricas compatíveis com os princípios críticos e reflexivos aos quais se atém. Importa à autora “[...] aproximar a dança dos princípios lógicos e conceitos científicos condizentes com seu modo de existir no mundo, configurar-se no corpo e articular-se no tempo[...]” (p.14). Este tecido teórico está disposto nas partes do livro que se preocupam com as afinidades entre dança e pressupostos científicos sem a intenção de fundir conceitos, mas apresentá-los em suas configurações teóricas de maneira relacional e compatível com as compreensões de seus contextos.
Na parte dos Exercícios de Equivalência, a autora expõe considerações aproximativas sobre temas que provocam posicionamentos e indicação conceitual, sendo eles: questão de enquadramento; identidade/nacionalidade; emergência; modelos de conjugação entre teoria e dança; flexibilidade adaptativa; a tese. Em todos os exercícios o foco recai sobre a dança contemporânea, isso porque a autora considera que a mesma “expressa uma lógica relacional não hierárquica entre corpo e mundo [...] se organiza à semelhança de uma operação metalinguística, na medida em que transfere a cada ato compositivo os papéis de gerador e gerenciador das suas próprias regras de estruturação” (p. 15).
Os exercícios descritivo-argumentativos expõem a responsabilidade e pensamento crítico da autora ao tratar das temáticas relacionadas às produções artísticas. Convém ressaltar que houve o cuidado na escolha dos artistas do mesmo modo que na escolha dos teóricos e elas (as escolhas) se aproximam por meio das concepções de mundo, espaço e tempo diferenciados. As concepções teóricas apresentam-se correlacionadas às concepções artísticas que, por sua vez, fazem parte do conjunto artístico-crítico-argumentativo da autora.
As ideias teóricas acerca da complexidade (Prigogine), de memes e design (Dawkins), da dança como pensamento do corpo (Katz) e dos parâmetros sistêmicos da Teoria Geral dos Sistemas (Uemov e Vieira) estão aqui destacadas e relacionadas às ideias/produções artísticas expressas no FID 2001 com The Show Must Go On (Jérôme Bel), Mono Subjects (Thomas Lehmen), Not To Know (Benoit Lachambre), Self Unfinished (Xavier Le Roy), Au Bord dês Métaphores (Rachid Ouramdane), Still Distinguished (Maria de La Ribot), Muzz e Lamont Earth Observatory (Sarah Chase), The Princess ProjectSummerspace e Biped (Merce Cunningham); El Trilogy (Trisha Brown), I sais I (Anne Teresa de Keersmaeker), Artérias: quando se perde o norteCravos (Pina Baush), MTD -90; O Corpo (Rodrigo Perdeneiras/Grupo Corpo). (Xavier Le Roy), (Cia. 2 Nova Dança), (Vicent Dunoyer), A autora traz em sua construção argumentativa a compreensão de história a partir de uma perspectiva de temporalidade assimétrica para interpretar e descrever sistemas culturais e propõe que a história da dança seja entendida não como “eventos locais que ocorrem num ponto dado do espaço e num instante dado da história” (p.52), mas como processos contínuos e difusos. Isso porque “[...] indivíduos e obras artísticas são únicos, mas implicados irremediavelmente numa mesma atividade global de organização do tempo - a história” (p.52).
O sentido processual e assimétrico proposto pela autora para pensar dança e história da dança estão compatíveis com considerações acerca da diferença entre justaposição e interação e “[...] da dinâmica de interação entre os componentes desses conjuntos (passos, acontecimentos) para tratá-los como sistemas e compreendê-los na sua complexidade ” (p.68). O entendimento de dança, história e historiografia tecido por Fabiana Britto conduz o leitor para exercícios não lineares de pensamento ao mesmo tempo em que convida a pensar os escritos de dança sob perspectiva crítico-reflexiva. Importa destacar que a pouca publicação de dança efetivada no nosso país é tratada pela autora não como sendo um atraso da dança, mas como “descompasso rítmico entre seu modo de ocorrer e a produção intelectual atualizada sobre sua ocorrência. Por falta de recursos teóricos competentes para lidar com questões conceitualmente sofisticadas, os temas difíceis relativos à sua especificidade artística mantiveram-se alojados no campo dos clichês e das licenças poéticas [...]” (p.20).
Essa consideração conduz à reflexão sobre o modo de pensar/falar/fazer dança realizado por professores, artistas, pesquisadores e outros. Faz refletir ainda sobre a ampliação dos cursos superiores em dança no país e sobre a relação entre formação e mercado prevista pela LDB 5692/96. Assim, a publicação dessas ideias em formato de livro colabora significativamente para o campo da dança e é um convite para o exercício de leitura desafiador, complexo e instigante, mas indispensável àqueles que tratam a dança respeitando suas especificidades e que trabalham pela promoção do entendimento de sua complexidade.

01 janeiro 2009

entreCorpos
o corpo na fronteira entre dança e performance

por Sandra Corradini


RESUMO


INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo discutir aspectos concernentes à obra Entrecorpos, ação intervencionista que propõe a investigação do corpo na fronteira dança/performance com interesse em questionar padrões de comportamento estáveis, problematizando-os na esfera relacional em espaços coletivos. Seu propósito circunscreve-se à necessidade de refletir a dança na contemporaneidade, em especial, de pensar corpo, espaço e espectador como partes co-dependentes e implicadas na obra de dança. Concebe-se a obra como objeto sensível tanto à presença do espectador, como ao espaço em que é realizada, devendo ser elaborada com enfoque na relação corpo-ambiente construindo-se continuamente, de modo a constituí-la porosa e permeável à fisicalidade do espaço e àqueles que nele circulam.
Uma questão bastante atual, os diálogos entre dança e artes plásticas, muito presentes no campo da dança, instalam-se na chamada fronteira, conhecida zona de conflitos, da qual emergem discussões, idéias e criações, incidindo em novas configurações, delineando novos contornos territoriais à dança. Discutir as relações dança/performance torna-se relevante diante da necessidade de refletir acerca de ações intervencionistas inscritas no campo da dança. Sob o foco do corpo-em-arte, o corpo requer treinamento adequado para ser lançado em experiência de liminaridade, induzindo-lhe fissuras que viabilizem novos agenciamentos, o que vem caracterizar o estado performático do corpo, fazendo da ação um acontecimento.


METODOLOGIA

De caráter interdisciplinar, a metodologia objetiva articular e integrar saberes e processos investigativos, visando a síntese no âmbito artístico da dança. Elaborada de acordo com o estabelecimento de eixos norteadores da pesquisa, a metodologia parte de uma pesquisa preliminar acerca dos estudos da performance, de Victor Turner e Richard Schechner, e da poética do corpo-em-arte, de Renato Ferracini (Lume Teatro), em busca de viabilizar instrumentalização conceitual para as investigações práticas em campo metodológico, tanto para a construção da obra, como para o treinamento corpóreo do atuador/bailarino.
Diante da proposta da obra e de sua condição efêmera articulada à transitoriedade de ambiências, incidindo sobre sua configuração, a metodologia considera as especificidades de cada espaço em que a obra é realizada, enfoca o planejamento e a investigação à priori e in loco e investe na elaboração de matrizes corpóreas, conjunto de células-fonte de ações/movimentos pré-selecionados e codificados, visando a improvisação e a recriação em tempo real.
Em contínuo processo investigativo, a obra, ainda em repertório, mantém-se condicionada a uma metodologia que se estende para além dos limites da sala de ensaio, inter-relacionando treinamento técnico-criativo, construção e execução da obra, implicando na necessidade de ser constantemente vivenciada, atualizada e reavaliada em seu plano conceitual e/ou metodológico e, se for o caso, reformulada em vista dos objetivos almejados.


RESULTADOS

Os resultados obtidos até o momento reiteram o caráter investigativo e experiencial da obra, tratando-se de uma ação presencial que se efetiva in loco e nas relações corpo-em-arte/espectador, corpos/ambiente, obra/espectador. Ressalta-se a co-dependência e a implicação entre corpo-em-arte, espaço e espectador, incidindo sobre a corporeidade do atuador/bailarino, sobre a configuração da obra e, sobretudo, na criação de zonas de turbulência, campos de tensão gerados pela energia produzida nas relações entre os elementos estruturais da ação. Observa-se a impossibilidade de reprodução deste momento em sala de ensaio, elevando-se a necessidade da obra estar sendo constantemente vivenciada, favorecendo seu processo de expansão e de detalhamento, bem como o aumento de sua estabilidade estrutural, que se afirma na medida em que é experienciada. Da mesma forma, observam-se os referenciais de pesquisa e os procedimentos metodológicos ganharem maior solidez por serem constantemente testados e validados. Enfatiza-se a importância de um treinamento específico voltado às particularidades da obra, centrado na atuação performativa do corpo, enfocando macro/micro-percepção, sensação e memória corporais, ampliação de vivência e agenciamento de sentidos. O estado liminar permeia o corpo-em-arte, que se move entre polaridades no processo de recriação da ação/movimento. A observação de padrões de comportamento é princípio metodológico, oferecendo elementos para criação.


CONCLUSÃO

A dança, arte do corpo, desde sua origem inscreve-se em cruzamentos híbridos e ao longo de seu processo evolutivo vem apresentando seus limites territoriais delinearem-se com novos contornos e relevos a partir dos diálogos estabelecidos com diferentes linguagens artísticas e campos do conhecimento. Zonas de passagem, de transição, de confluência... O que se observa é a sua complexificação e aumento de sua especificidade decorrente da busca pela sutilização do corpo inerente aos processos que conduzem às suas configurações. Esta pesquisa artística, inscrita no campo da dança, na fronteira dança/performance, focaliza corpo, espaço e espectador para preocupar-se com as inter-relações entre tais elementos e encontra o tempo potencializado no corpo, no movimento, na recriação e no devir, revelado no processo de elaboração da obra, nos procedimentos metodológicos realizados a partir de modos particulares de pensar e de fazer arte, próprios de um corpo que dança. O corpo, treinado para ser lançado em território cênico, na liminaridade dança-performance, um corpo expandido, em estado extra-cotidiano, um corpo-em-arte, deve se mover numa dança macro/micro-perceptiva e com ela restaurar o espaço-físico, atualizando e resignificando seus elementos através da recriação do movimento, e ao mesmo tempo, numa dança-ação extraordinária, irromper o cotidiano, causar estranhamento e deslocar o espectador do lugar de mero observador para participante na construção da obra, tornando-o co-autor.


Palavras-chave: Dança; performance; intervenção urbana.
Trabalho selecionado para a Mostra Ciência e Tecnologia da 6ª Bienal de Arte e Cultura da UNE - 2009.
Foto: Luciana Rodrigues.
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