05 setembro 2011

Michel Foucault

Paul-Michel Foucault nasceu em 15 de outubro de 1926. Filho de Paul Foucault, cirurgião e professor de anatomia em Poitiers, e Anna Malapert, Michel pertencia a uma família onde a medicina era tradição, pois tanto o avô paterno quanto o materno eram cirurgiões, mas Michel traçou o próprio caminho. Desde cedo demonstrou interesse pela história influenciado por um professor que teve ainda na escola, padre De Montsabert.

Foucault era uma pessoa curiosa, o que fazia com que buscasse por conta própria suas leituras. Seu interesse pela filosofia não tardou a aparecer, aprofundando seus estudos com entusiasmo. Como pano de fundo, Foucault vivia os tormentos da Segunda Guerra Mundial. Decepcionando a expectativa de seu pai de que se tornasse médico, e apoiado pela mãe, Foucault segue seu rumo à filosofia. O fato de pertencer a uma família burguesa, possibilitou a Foucault um auxilio frente as suas necessidades econômicas. Foucault e o pai tinham uma relação conturbada, o que não se repetia com a mãe, com quem mantinha forte vínculo. Mudou-se para Paris em 1945, e retornava sempre que podia para visitar a mãe em Poitiers. Enquanto preparava-se para provas, concorrendo a vagas como aluno na École Normale da rue d'Ulm, Foucault entrou em contato com Jean Hyppolite, professor que lhe ensinou Hegel e reforçou seu encanto e sua vocação para a filosofia, marcando-o profundamente. Em 1946, iniciou seus estudos na École Normale da rue d'Ulm. Foucault trazia com ele a característica de ser uma pessoa solitária e fechada, o que foi tornando-se cada vez mais forte, pois as relações e a competitividade por parte dos alunos desta escola fizeram com que ele recuasse ainda mais do contato social. Tornou-se uma pessoa agressiva e irônica, características estas que se mantiveram por toda sua vida.

Em 1948 Foucault tentou suicídio, o que acabou levando-o a um tratamento psiquiátrico. Este impulso, retornou outras vezes em sua vida. Segundo o psiquiatra que o acompanhou, esta atitude estava ligada à dificuldades frente a sua homossexualidade, que começava a anunciar-se. Esta experiência colocou-o pela primeira vez em contato com a psiquiatria, psicologia e psicanálise, o que marcou profundamente a sua obra. Foi leitor de Platão, Hegel, Kant, Marx, Nietzsche, Husserl, Heidegger, Freud, Bachelard, Lacan, etc. Foucault aprofundou-se nos estudos de Kant. Considerava que sua filosofia era uma crítica a Kant, no que diz respeito a noção do sujeito enquanto mediador e referência de todas as coisas, já que para Foucault o homem é produto das práticas discursivas. Admitia grande influência de Heidegger em sua obra, chegando a afirmar: "Todo o meu devir filosófico foi determinado por minha leitura de Heidegger."


É influenciado também por Nietzsche, por quem apaixonou-se, e por Bachelard. Leu também autores como Kafka, Faulkner, Gide, Genet, Sade, René Char, etc. Este filósofo tornou-se grande amigo de Louis Althusser, que o levou a aderir ao partido comunista. Por toda a vida esteve às voltas com a política.

Licenciado em filosofia pela Sorbone em 1948, em 1949 licenciou-se em psicologia. No ano de 1952 cursou o Instituto de Psychologie e obteve diploma de Psicologia Patológica. No mesmo ano tornou-se assistente na Universidade de Lille. Foucault lecionou psicologia e filosofia em diversas universidades, em países como: Alemanha, Suécia, Tunísia, EUA, etc.

Trabalhou durante muito tempo como psicólogo em hospitais psiquiátricos e prisões. Escreveu para diversos jornais. Viajou o mundo apresentando conferências. Em 1955 mudou-se para Suécia, onde conheceu Dumézil. Este contato foi importante para a evolução do pensamento de Foucault, pela idéia de estrutura que Dumézil desenvolveu. Conviveu com pessoas importantes da intelectualidade de sua época, como Jean-Paul Sartre, Jean Genet, Canguilhem, Gilles Deleuze, Merlau-Ponty, Henri Ey, Lacan, Binswanger, etc. Em 1961 defendeu tese de Doutorado intitulada: "Loucura e Desrazão". Esteve no Brasil em 1965 para conferência à convite de Gerard Lebrun, seu aluno na rue d'Ulm em 1954. Foucault faleceu no dia 25 de junho de 1984, em plena produção intelectual, o que fez com que sua morte fosse muito sentida.

A causa da morte foi questão de muitas discussões, sendo levantada a hipótese AIDS. O autor publicou as seguintes obras:"Doença mental e Psicologia" (1954); "História da Loucura" (1961); "Raymond Roussel" ( 1963 ); "O nascimento da clínica" (1963 ); "As palavras e as coisas"(1966); "A Arqueologia do saber" (1969); "A ordem do discurso" (1970 - aula inaugural do College de France); "Vigiar e Punir" (1977); "A vontade de saber - História da sexualidade I" (1976); "O uso dos prazeres - História da sexualidade II" (1984); "O cuidado de si - História da sexualidade III" (1984.

Foucault foi e ainda é um filósofo respeitado e de sucesso. Sempre polêmico, tanto pelas suas idéias, quanto por seu comportamento, temperamento e sua opção sexual. Por ser uma pessoa extremamente estudiosa, culto, atraía admiração dos demais. Há grandes discussões à respeito de Foucault representar ou não a corrente estruturalista. O próprio autor em sua obra, "O nascimento da clínica", usa pela primeira vez o termo estrutura, demonstrando neste texto a intenção de realizar uma análise estrutural. Em 1969, em seu novo texto "Arqueologia do saber", Foucault revela que a análise estrutural não o auxiliou a tratar da problemática que pretendia no texto "O nascimento da clínica". Ao contrário, acredita que a análise estrutural acabou por nublar a problemática em questão.

O método mais apropriado, a seu ver, seria o método arqueológico, separando-se e diferenciando-se então da proposta estruturalista. O pensamento de Foucault poderia ser localizado como parte do debate sobre modernidade, onde a razão iluminista ocupa o local de destaque. O homem, para este filósofo, ocupa um papel importante, uma vez que é sujeito e objeto de conhecimento.

Considera o homem enquanto resultado de uma produção de sentido, de uma prática discursiva e de intervenções de poder. Foucault discute o homem, enquanto sujeito e objeto do conhecimento, através de três procedimentos em domínios diferentes: a arqueologia, a genealogia e a ética. Estes procedimentos constituem momentos do método. Para este autor o método dá-se diante do objeto à ser estudado e não ao contrário. Através do método arqueológico, este filósofo aborda os saberes que falam sobre o homem, as práticas discursivas, e não verdades em relação a este homem.

Reivindica uma independência de qualquer ciência, pois acredita não poder localizar o homem através do que ela pode oferecer. Estabelece sim, inter-relações conceituais dos diferentes saberes e não de uma ciência. A arqueologia pode ser encontrada principalmente em duas de suas obras: "A História da Loucura" e "As palavras e as Coisas". Neste último livro, surge a possibilidade de explicitação das condições da possibilidade para que os conhecimentos possam se dar de uma determinada forma, em uma determinada época, que é o que o autor chama de episteme.

A genealogia, segundo este autor, possibilita pensar na questão do poder como uma rede onde o homem é visto como objeto e sujeito das práticas do poder. Mais tarde, Foucault irá desenvolver a noção do bipoder. A genealogia não se opõe à história e sim aos desdobramentos meta-históricos das significações ideais e das indefinidas teleologia. Opõe-se apenas à pesquisa de origem. Este método, encontra-se principalmente em sua obra "Vigiar e Punir". A ética, para Foucault, é a possibilidade de apontar o sujeito que constitui à si próprio como sujeito das práticas sociais. É o momento para refletir o motivo pelo qual o homem moderno constitui critérios de um modo de subjetivação em que tenha espaço a liberdade. Encontra-se este método principalmente em "O uso dos prazeres" e "O cuidado de si". Esta elaboração foi feita nos últimos meses da vida de Foucault, momento em que parecia surgir para este filósofo a necessidade de pensar sobre ele mesmo.


Fonte: http://www.ufrgs.br/corpoarteclinica/amigo/foucault.htm

08 agosto 2010


Entrevista – Jacques Rancière

A associação entre arte e política segundo o filósofo Jacques Rancière

Gabriela Longman e Diego Viana


Para Jacques Rancière, política e arte têm uma origem comum. Em suas obras, o filósofo francês desenvolve uma teoria em torno da “partilha do sensível”, conceito que descreve a formação da comunidade política com base no encontro discordante das percepções individuais. A política, para ele, é essencialmente estética, ou seja, está fundada sobre o mundo sensível, assim como a expressão artística. Por isso, um regime político só pode ser democrático se incentivar a multiplicidade de manifestações dentro da comunidade.

Recém-lançado na França, seu último livro, Le spectateur émancipé (O espectador emancipado – ainda inédito no Brasil), debate a recepção da arte e a importância – ética e política – da posição do espectador. O volume é uma compilação de conferências realizadas por ele nos últimos anos, uma delas no Sesc, em São Paulo. Em 2002, uma de suas principais obras, O mestre ignorante, foi traduzida e distribuída gratuitamente entre professores em formação no Rio de Janeiro. Trata-se da história de Joseph Jacotot, que, no século 19, ensinou a língua francesa a jovens holandeses da classe operária. Detalhe: nem mesmo o professor conhecia o idioma de Zola.

Originalmente discípulo do filósofo marxista Louis Althusser e coautor de Ler O capital, de 1965, Rancière afastou-se do pensamento do mestre nos anos 1970. Rejeitou a ortodoxia marxista da época, mas jamais deixou de se considerar um homem de esquerda. Até se aposentar em 2000, foi professor da Universidade Paris 8, fundada para acolher formas de pensamento que não encotravam espaço no ambiente da Sorbonne. Sua ligação com o Brasil é antiga. Sua esposa, Danielle Ancier, era professora de filosofia na USP em 1968. Eles se conheceram quando ele esteve no país para uma conferência sobre Ler O capital.

O filósofo nos recebeu em seu apartamento no nono arrondissement parisiense. Perto de completar 70 anos, afirma que “o presente não é muito alegre”, mas critica as visões saudosistas de parte da esquerda. Defensor do ativismo social, ele comenta a ascensão dos ecologistas e questiona a ideia de um mundo dominado por imagens. Convidado para um colóquio no Rio de Janeiro pelo Ano da França no Brasil, ele recusou em função de um conflito de agenda, mas concendeu a seguinte entrevista para a CULT.

CULT – Seu último livro, Le spectateur émancipé, menciona o teatro, as artes performáticas, a fotografia, as artes visuais e o cinema, mas não fala de TV. O espectador de TV também é ativo?

Jacques Rancière – No meu livro, eu tentei reinterpretar a relação das pessoas com o espetáculo sem me interessar tanto pela questão das mídias. Mas me centrei mais na ideia, tão comum, de que “agora não há nada mais além da TV… não há mais arte, não há mais cultura, não há mais literatura, nada”.

Há casos em que o espectador está na frente da TV mudando de canal sem prestar atenção ao que está vendo. Eu me preocupei mais com o cinema, as artes plásticas, nos quais uma relação forte do olhar está pressuposta. A TV, de modo geral, não pressupõe um olhar forte, mas um olhar alienado ou distraído.

No espetáculo, o espectador de teatro é levado a trabalhar, porque aquilo que ele tem à sua frente o obriga a um trabalho de síntese. É preciso sair de uma peça, de uma exposição ou do cinema com certa ideia na cabeça, o que não necessariamente é o caso da televisão, em que as coisas podem simplesmente passar.

Já um lugar onde os espectadores se encontram, para as artes performáticas, por exemplo, implica um recorte fechado no tempo. Não é uma questão de suporte, mas do tipo de atitude e de atenção criadas. Podemos nos colocar na frente de um filme de TV com a postura de quem está no cinema. Nesse momento, nós agimos como o espectador de cinema.

CULT – O senhor rejeita a ideia de estetização da política que encontramos em Walter Benjamin. Como podemos interpretar a manipulação das sensações dentro do campo político? Por exemplo, o incentivo ao medo do terrorismo, a apresentação de políticos como mercadorias não seriam maneiras de estetizar a relação das pessoas com o poder político?

Rancière – Penso que a política tem sempre uma dimensão estética, o que é verdade também para o exercício das formas de poder. De certa maneira, não há uma mudança qualitativa entre o discurso em torno do terrorismo hoje e o discurso midiático contra os trabalhadores no século 19, que dizia que os operários contestadores cortavam pessoas em pedaços. Sempre houve, digamos, uma série de discursos organizados pelo poder. Eventualmente, eles serviram como forma de ilustração.

Não há novidade radical. A estética e a política são maneiras de organizar o sensível: de dar a entender, de dar a ver, de construir a visibilidade e a inteligibilidade dos acontecimentos. Para mim, é um dado permanente. É diferente da ideia benjaminiana de que o exercício do poder teria se estetizado num momento específico. Benjamin é sensível às formas e manifestações do Terceiro Reich, mas é preciso dizer que o poder sempre funcionou com manifestações espetaculares, seja na Grécia clássica, seja nas monarquias modernas.

Há um momento em que é preciso distinguir duas coisas: de um lado, a adoção de certas formas espetaculares de mise-en-scène do poder e da comunidade. De outro, a ideia mesma de comunidade. É preciso saber se pensamos a comunidade política simplesmente como um grupo de indivíduos governados por um poder ou se a pensamos como um organismo animado.

Na imaginação das comunidades há sempre esse jogo, essa oscilação entre a representação jurídica e uma representação estética. Mas não creio que se possa definir um momento preciso de estetização da comunidade.

Por exemplo, o nazismo, que é usado frequentemente como exemplo de política estetizada, na verdade também recuperou a estética de seu tempo. Pense nas demostrações dos grupos de ginástica em Praga nos anos 1930. Eram associações apolíticas ou absolutamente democráticas, com a mesma estética que encontramos no nazismo.

Para mim, é preciso tomar distância da ideia de um momento totalitário da história marcado especialmente pela estetização política, como se pudéssemos inscrever isso num momento de anti-história das formas estéticas da política e das formas de espetacularização do poder.

CULT – Uma das críticas mais frequentes à arte contemporânea é a impossibilidade de definir o que é uma obra de arte e o que não é. O senhor escreve que, “para que uma maneira de fazer técnica seja qualificada como artística, primeiro é preciso que seu tema o seja”. Como definir a obra de arte ou a arte em si?

Rancière – Não definimos a obra de arte como “obra”. O que eu digo, no fundo, é que uma forma de arte é sempre ligada à dignidade dos temas.

O romance torna-se grande arte quando a vida de qualquer um se tranforma em arte. A fotografia no cinema não é só uma forma de mostrar o visível, mas mostra que uma cena de rua ou a vida de qualquer pessoa tem direito de ser citada na arte.

A partir do momento em que tudo é representável, não há mais especificidade. A especificidade não será dada, enfim, pela técnica em particular, mas pelos códigos de apresentação. Mais uma vez, não creio que haja uma radicalidade nova.

Há algumas décadas, as análises de Arthur Danto vieram dizer que somente a instituição é quem faz a obra de arte. De certa maneira, isso sempre foi verdadeiro. A “representação da representação” ligada a certo tipo de procedimento ou de instituição sempre foi necessária para identificar uma coisa como pertencente ao universo da arte.

CULT – Mas, hoje, mesmo uma grande parte do público questiona o fato de estar vendo “arte”. Não há uma maior distância entre a apresentação e a recepção?

Rancière – Vivemos hoje em dia a contradição máxima, qualquer coisa pode entrar na esfera da arte. Mais do que nunca, a arte, hoje, se constitui como uma esfera à parte, com as pessoas que a produzem, com as instituições que a fazem circular, seus críticos.

Numa época em que os afrescos de uma igreja eram o que se considerava arte, essa questão simplesmente não se colocava, porque a arte não existia como instituição. É a contradição constitutiva do regime estético.

CULT – A última Bienal de São Paulo tinha um andar inteiramente vazio, simbolizando o vazio na arte. Como podemos interpretar esse vazio? O senhor fala do fim da arte utópica. O vazio seria a arte “atópica”?

Rancière – Podemos fazer o vazio significar várias coisas. Há artistas que organizam retrospectivas de suas obras, e o que vemos? Nada. Há apenas guias que falam. Há muitas possibilidades. Podemos conceber uma exposição sobre o tema do vazio no modernismo duro. Ou então imaginar uma exposição pós-moderna desencantada “mostrando o vazio porque a arte contemporânea é vazia”. Ou ainda criar uma exposição em termos conceituais, em que efetivamente substituímos as obras pelo discurso sobre as obras, e assim por diante.

Mas a verdade é que eu nunca estou muito interessado por esse tipo de estratégia. Se partimos da ideia de que não há nada, é preciso mostrar que não há nada, e mostrar que o que há não vale nada, e assim por diante.

São estratégias eficazes, mas não tão interessantes. Quando não sabemos muito bem como qualificar algo, sempre podemos fazer uso do “vazio”. Eu me lembro da Bienal de Veneza de dois anos atrás, em que havia uma multiplicidade de obras neo-naïf, neoexpressionistas, como iconografia provocante. Há multiplas estratégias.

CULT – O senhor critica muitas vezes a separação a priori entre atividade e passividade. Nesse contexto, como analisa as tecnologias colaborativas que estão surgindo na atividade artística?

Rancière – O que digo não é especialmente ligado à arte colaborativa. Em primeiro lugar, toda atividade comporta também uma posição de espectador. Agimos sempre, também, como espectadores do mundo.

Em segundo lugar, toda posição de espectador já é uma posição de intérprete, com um olhar que desvia o sentido do espetáculo. É minha tese global, que não está ligada só a uma arte interativa.

Todas as obras que se propõem como interativas, de certa maneira, definem as regras do jogo. Então, esse tipo de obra pode acabar sendo mais impositivo do que uma arte que está diante do espectador e com a qual ele pode fazer o que bem entender.

Podemos dizer, então, que as obras estão no museu, na galeria, na internet, e o espectador é convidado a colaborar. Mas isso é só mais uma forma de participação, e não necessariamente a mais interessante.

CULT – O senhor recupera o lado político da literatura, graças a seu poder de reconfigurar os modos de existência, e evoca a passagem de Aristóteles em que ele diz que o ser humano é político porque possui o logos, ou seja, é capaz de fazer discursos. Hoje, os meios de publicação tradicionais, jornais, editoras etc. estão ameaçados por formas como blogs e redes sociais. Que tipo de mudanças podemos esperar na vida política com essas novas formas?

Rancière – Isso depende de até que ponto a internet define uma escritura específica. Para mim, na verdade, a internet define essencialmente apenas um modo específico de circulação da informação, que não nega as formas anteriores da escrita. Dá para consultar, numa infinidade de sites, as obras clássicas da literatura e da filosofia, ao mesmo tempo em que existe a linguagem SMS.

Tudo circula, cada vez mais rápido e com mais facilidade: da linguagem minimalista dos SMS aos livros todos, digitalizados pelas grandes bibliotecas. Muitas vezes, recuperam-se livros que não podem mais ser encontrados no papel. Desconfio sempre desse discurso de que o Google vai matar o livro. Não há motivo, porque podemos ler livros no Google.

Para pensar essa questão da política e da literatura na era da internet, precisamos primeiro pensar nas relações entre tipos de mensagem. A internet é, para mim, um suporte que não vem associado a um tipo de mensagem particular. Portanto, não deve causar grandes mudanças.

É diferente do que aconteceu com a chegada do cinema, por exemplo. Podemos constatar que a literatura não tem hoje o papel que tinha no século 19. Apesar do número enorme de romances publicados, poucos são os que remodelam a imagem do indivíduo e da comunidade. Esse papel foi assumido pelo cinema. A literatura oferecia uma capacidade de alargar as formas de percepção do mundo e da comunidade, ela agia sobre a visão e o sentimento de praticamente qualquer um. Hoje, quem faz isso é o cinema, a televisão, a internet.

CULT – Até há pouco tempo, havia Bush e Dick Cheney de um lado e, de outro, a Europa como uma espécie de guardiã do “bom senso” na política. Agora, os norte-americanos elegeram Obama e os europeus escolheram Sarkozy e Berlusconi, acompanhados por um fortalecimento geral dos partidos conservadores. Falando das eleições de 2002, o senhor disse que não se pode vencer a extrema direita associando-se ao consenso e às oligarquias. O ano de 2009 é a conclusão do que começou em 2002?

Rancière – Não acho que podemos comparar. Em 2009, foram eleições europeias. Se tomamos o caso da França, em 2005 houve o referendo da Constitição Europeia e a União triunfou.

Em 2007, Sarkozy chegou ao poder e renegociou os poderes dessa Constituição. Ele decidiu que não se submeteria ao referendo pois, segundo ele, havia questões importantes de Estado envolvidas. Esse é um primeiro ponto. É preciso dizer que falamos de 40% do eleitorado que votou e é preciso pensar nos 60% que não votou.

A mudança entre 2002 e 2009 é que a parte do corpo eleitoral que não votou está mais à esquerda. A vitória da direita está ligada mais ao fato de que o eleitorado de esquerda não se reconhece nos partidos de esquerda, do que numa conversão da população inteira ao sarkozismo. O eleitorado de direita está contente com o que tem, está contente com Sarkozy e Berlusconi.

O eleitorado de esquerda não está satisfeito nem com os homens que estão poder, como Gordon Brown, nem com os que estão na oposição, e o melhor exemplo é a oposição socialista na França. Não acho que haja um crescimento extraordinário da direita e da extrema direita, mas sim um desencanto da esquerda.

CULT – Mas a crise gerou nos Estados Unidos um abandono da direita, representada por Bush…

Rancière – Houve uma mobilização enorme em torno das eleições norte-americanas. Uma série de pessoas que nunca tinham votado foi votar pela primeira vez, especialmente os negros.

No caso da Europa, foi o contrário. Há países onde apenas 20% dos eleitores votaram, e só 40% na França. Não acho que esse contraponto deva ser pensado em relação direta com a crise financeira.

O resultado foi precipitado por ela, mas a ideia de Obama contra Bush remete a uma insatisfação anterior e mais fundamental do que a mera reação à crise econômica.

CULT – Os desinteresses pela política e pela arte seriam duas vertentes da mesma situação?

Rancière – Não tenho certeza, até porque o desinteresse pela política não é tão claro assim. Muita gente votou nas eleições presidenciais há dois anos. Nas eleições europeias, aparentemente muitas pessoas que normalmente votam não votaram, e muita gente que não costuma votar saiu de casa porque queria salvar o planeta. Esse é um primeiro aspecto.

O segundo é que não creio que haja um desinteresse pela estética, pela arte. As pessoas ainda vão ver Jeff Koons em Versalhes. O interesse pelos artistas ainda é muito importante. É verdade que de vez em quando há coisas desastrosas, teve La force de l’art no Grand Palais e estava sempre deserto, mas as pessoas se davam cotoveladas para ver Picasso.

CULT – Se a mudança do mundo passa por reconfigurações da maneira de pensar e entender a realidade, então ela não passa pelas revoluções como as conhecemos?

Rancière – Podemos pensar nisso baseados nas revoluções que já aconteceram. Em primeiro lugar, uma revolução é uma ruptura na ordem do que é visível, pensável, realizável, o universo do possível. Os movimentos de revolução sempre tiveram a forma de bolas de neve.

A partir do momento em que um poder legítimo se encontra deslegitimizado, parece que não está em condições de reinar pela força, porque caíram todas as estruturas que legitimam a força. Criam-se cenas inéditas, aparecem pessoas que não eram visíveis, pessoas na rua, nas barricadas. As instituições perdem a legitimidade, aparecem novos modos de palavra, novos meios de fazer circular a informação, novas formas da economia, e assim por diante. É uma ruptura do universo sensível que cria uma miríade de possibilidades.

Não penso as revoluções, nenhuma delas, como etapas de um processo histórico, ascensão de uma classe, triunfo de um partido, e assim por diante. Não há teoria da revolução que diga como ela nasce e como conduzi-la, porque, cada vez que ela começa, o que existia antes já não é válido.

Existe uma carta interessante de Marx, um pouco após 1848, quando os socialistas pensavam que as estruturas seriam abaladas mais uma vez. Ele diz que as revoluções não funcionam como os fenômenos científicos normais, são mais como os fenômenos imprevisíveis, os terremotos. Não sabemos como elas vão se comportar. Todas as teorias científicas, estratégicas, das revoluções demonstram isso.

CULT – Não podemos antecipá-las…

Rancière – Podemos prepará-las, mas não antecipá-las. A temporalidade autônoma de uma revolução, os espaços que elas criam não correspondem jamais ao quadro conceitual que temos no início.

CULT – A estratégia da esquerda tradicional é o confronto aberto, o que se opõe à sua teoria de reconfiguração estética da vida política…

Rancière – Temos de pensar na estética em sentido largo, como modos de percepção e sensibilidade, a maneira pela qual os indivíduos e grupos constroem
o mundo. É um processo estético que cria o novo, ou seja, desloca os dados do problema.

Os universos de percepção não compreendem mais os mesmos objetos, nem os mesmos sujeitos, não funcionam mais nas mesmas regras, então instauram possibilidades inéditas. Não é simplesmente que as revoluções caiam do céu, mas os processos de emancipação que funcionam são aqueles que tornam as pessoas capazes de inventar práticas que não existiam ainda.

Não sou contra processos cumulativos, claro: se imigrantes ilegais têm capacidade de fazer greves e manifestações em condições perigosas para eles mesmos, isso define um alargamento não só do poder e das capacidades que temos, mas também do mundo no qual inscrevemos nossas ações e nosso pensamento.

A transformação dos mundos vividos é completamente diferente da elaboração de estratégias para a tomada do poder. Se há um movimento de emancipação, há uma transformação do universo dos possíveis, da percepção e da ação, então podemos imaginar como consequência também um movimento de tipo revolucionário, de tomada do poder. É claro que estamos falando do passado, porque o presente não é muito alegre.

CULT – Por que “o presente não é muito alegre”?

Rancière – O presente não é alegre porque não há esperanças fortes, digamos assim, que sustentem os movimentos existentes.

Por exemplo, a recente greve das universidades, que criou algumas formas de manifestação, digamos, particulares: cursos na rua, no metrô, invenções para deslocar para o campo da sociedade como um todo o problema que atinge o ensino superior francês.

Mas todas essas inovações foram completamente isoladas do ponto de vista da informação. O ano de 1968 existiu em parte porque o rádio cobria profundamente o movimento estudantil, sabia-se tudo que acontecia, havia uma geração de jovens repórteres de rádio que fez circular as informações.

Agora, aconteceu o contrário. A mídia aprisionou o movimento universitário numa espécie de paisagem hostil, gente que não entendia, que dizia coisas alucinantes. O partido majoritário de direita (UMP) criou associações de pais de estudantes exigindo o reembolso das inscrições porque os estudantes não tiveram aula. Isso era impensável há dez anos.

As forças da dominação e da exploração aumentaram consideravelmente seus meios de ação. Diante da crise financeira, não vimos nenhum discurso forte e sério contra o capitalismo, só esses pequenos grupos e partidos anticapitalistas com as mesmas ideias de décadas atrás. Nada que trouxesse esperança, movimentos com ideias alternativas a uma concepção hegemônica confrontada com suas próprias contradições.

O presente não é muito alegre porque as forças da dominação e da exploração fizeram progressos consideráveis. Estudei, por exemplo, o movimento operário do século 19, que criou novas formas de associação e de visão do mundo e que resultou em movimentos políticos que, como sabemos, falharam. Mas é certo que o universo dos possíveis foi amplamente reformulado. O povo em manifestação podia algo que não podia antes, diante da realeza.

No mesmo sentido, o operariado adquiriu novos poderes e direitos face aos patrões. As formas de comunicação se comunicam entre elas e criam um universo de circulação de energia, ideias, vontades. Foi muito marcante, em 1968, vermos surgirem de repente, em diversos lugares ao mesmo tempo, formas de contestação e de ação.

É claro que tudo isso caiu com o movimento, mas foi um momento em que os estudantes viram que podiam fazer o mesmo que os operários, e vice-versa. Criaram-se formas de ação completamente imprevistas. O que se transmite são aberturas do campo do possível, não do campo estratégico.

CULT – No interior de sua distinção entre política e polícia, como podemos interpretar o crescimento da vigilância e do controle? Por que fizemos essa escolha, em vez do encontro político?

Rancière – É a lógica do funcionamento dos Estados como instâncias de administração, e dos sistemas midiáticos: trocar a política pela identificação de problemas que precisam ser solucionados. Se não é o conflito que é motor, o motor é uma espécie de patologia da vida política que a administração se propõe a remediar. É o modo de funcionamento do Estado moderno.

De um lado, há uma pretensão ao objetivismo, identificar os problemas e as imperfeições da sociedade, e, de outro lado, precisamente essa espécie de objetivismo idealizado é, essencialmente, uma questão de gestão das opiniões.

Tomando a questão da segurança, qual é o balanço da gestão de Sarkozy, primeiro como ministro do Interior, depois como presidente da República? Um desastre. Estamos muito menos seguros do que antes. O que está em funcionamento é a gestão da insegurança como um sentimento para agregar as pessoas em torno de um poder que gerencia a segurança.

Resisto muito às teorias paranoicas de “sociedade de controle” que dizem que “somos observados e controlados em todo canto”. No 11 de Setembro, vimos como as pessoas podem passar tranquilamente diante das câmeras de segurança e fazer seu atentado sem serem molestadas. Acredito muito mais na ideia de uma administração ideológica, no sentido tradicional, dos sentimentos, particularmente no que diz respeito à segurança.

Criamos um sentimento de que vivemos na insegurança e precisamos de gestores de segurança. Isso cria uma legitimação de decisões autoritárias que podem se estender a praticamente tudo. No fim, a segurança acaba significando qualquer coisa. A pobreza dos subúrbios, a saúde dos idosos, os “países terroristas” pelo mundo, os poluidores, qualquer coisa.

A segurança vira um sentimento de perigo onipresente, extrapolando a ideia da proteção das “pessoas de bem” contra os maus de qualquer tipo. Isso cria estruturas de gestão estatais e interestatais, que não são necessariamente da ordem do controle minucioso ou do terror, mas de um sentimento flutuante.

Fonte: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-jacques-ranciere/

18 novembro 2009

dramaturgia na dança
as relações teatro/dança em zona de transitividade
resumo apresentado no X Seminário de Pesquisa e Pós-graduação
X SEMPPG
- UFBA
Sandra Corradini


O diálogo entre dança e teatro não é recente. Também é sabido que as discussões relativas às delimitações epistemológicas acerca de um e de outro campo do conhecimento escapam à lógica das simples relações. No que tange à dramaturgia, muitas delas mostram-se permeadas por uma problemática que parece estar vinculada ao diferencial entre as informações já sistematizadas por estas distintas áreas: A dramaturgia na dança, por se referir a uma área em crescente expansão ainda pouco explorada academicamente ao passo que no teatro diz respeito a uma área que abarca um vasto campo conceitual há muito investigado. O objetivo deste artigo é deslocar a hierarquia nas relações entre teatro/dramaturgia e dança/dramaturgia e através de uma perspectiva coevolutiva entre dança e teatro compreender a “instauração” da dramaturgia na dança como síntese emergente dos processos relacionais entre ambos inseridos em zona de transitividade. Lugar transitório onde co-operam dois ou mais campos para configuração de sínteses, zona de transitividade é aqui discutida como um lugar onde teatro e dança coadaptam-se com intenção colaborativa no processo cooptativo de seleção das informações de ambos os campos, ajustando suas lógicas operativas para configuração de sínteses. Reiterantes da interdisciplinaridade, as trocas informativas implicadas nas relações teatro/dança realizadas em zona de transitividade propiciam a ininterrupta configuração e complexificação de seus campos e ao mesmo tempo lhes instauram especificidades.


Palavras-Chave: Dança, teatro, dramaturgia, zona de transitividade, coevolução.


Fonte: http://www.semppg.ufba.br/imp_aluno_pos.php3?tipo=aluno_pos&cpf_aluno=13006031865&cpf_coord=02472633890


13 julho 2009

Impressões digitais: "itens de primeira necessidade"
por Sandra Corradini




Dias e dias Pós–Marcelo se passaram desde o “Itens de Primeira Necessidade” na terceira maior metrópole brasileira. Meu corpo-memória em São Paulo ativa outro espaço, ambiente, contexto, a cidade de Salvador. É domingo, doze de julho de 2009. Visualizo o Corredor da Vitória, em cima da terra o Goethe e dentro dele o teatro. Fora dele, sua parede externa amarela delimita seu espaço a poucos passos da imponência do hotel para onde caminho do outro lado da rua. Nesta paisagem ainda inclui-se a igreja na praça com o enorme urso de pelúcia pendurado enforcado na lança da grade de ferro visto ao fundo na foto bem como o museu e sua porta de entrada aberta a um degrau da calçada, o condomínio com sua fachada pós-moderna clean e preta, e o suor absorvido pelo compensado quente que inviabiliza acesso à construção bem próxima ao corpo que insiste em se lançar contra a parede dura. A dona da loja transparente de presentes isola-se atrás da porta fechada de entrada e o cabelo baiano transfigura-se em frente ao salão de beleza. O posto/Mac e o balão e o carro são coloridos, mas o beco ao lado da banca de revista que abriga um rosto-cabeça-cérebro não identificado à frente do backlight da Vivo é sombrio. O corpo scorceseano jogado “After Hours” no asfalto ao lado da caçamba estacionária tipo “brook” está tal qual o corpo adormecido sonhando sentado encostado no muro da casa vazia. Há um outro corpo que ainda respira em pé no entroncamento onde vias confluem à praça central, outro que se flexiona contra o desejo que não acende mais e outros dois que se (i)mobilizam na sarjeta, frente a frente, plastificados, a um passo do ônibus e do abismo. Mas ainda há não sei quantos outros corpos em outros lugares inscritos no corpo-memória de cada ser que observa, fala, grita, ri, agride, comenta, colabora, se aproxima, desvia, rejeita tais ações e são vistos.
Embrulhada feito pão quente em papel kraft, atravesso solitária a rua em direção entre arte e vida. Sento-me ao lado esquerdo da árvore, de costas bem em frente ao hotel, de onde avisto um carrinho de cachorro quente ou de pipoca bem em frente ao portão principal da escola do outro lado da rua. O vendedor parado me olha e percebe que eu o olho parada. E novamente eu o olho, ele me olha, e nós, aparentemente parados, continuamos nos olhamos. “Você não está passando bem?”, cuida-me uma voz que anda atrás de mim, que, sem resposta, é levada ao vento, vitoriosa, do centro à praia, onde todos os dias o sol se põe atrás do mar. “Ela está olhando pra mim”, pronuncia-se o vendedor que me olha do outro lado da rua. Próximo dele, Marcelo clica a foto, congelando vontade e seu contrário, tensionados em meu corpo que resiste cinético, sinestésico, sintético, estético, performático, investigativo, experimental.
No início, é ou parece ser simples: o corpo move-se pela escuta e seleção de forças opostas que ele próprio elege ao se inserir num campo onde a regra é confrontar automatismo inerente ao desejo que o move versus resistência à configuração deste corpo autômato e criar espaço para novas investidas em diferentes direções e sentidos para o movimento. Evidenciam-se as relações de poder e linhas de fugas no próprio corpo performático, tensionado, percebido, configurado e reconfigurado a cada percepção e impulso na sua relação com o ambiente. A verticalização na ação ocorre ao longo dos aproximados quarenta e cinco minutos da ação performática, em camadas, na medida em que os princípios configuradores da relação forma/conteúdo investigada são estabilizados no corpo. Somam-se, então, a seleção e a aleatoriedade das reverberações incidentes no momento da ação advindas dos estudos realizados em processo de ensaio bem como as associações produzidas pelo corpo e no corpo entre estes e as percepções do ambiente em que este executa a ação. Som, luz, calor, odor são estímulos para a ação performática; esta, resultante do processo de construção/organização das informações presentes e das que atravessam o corpo na sua relação com o ambiente, ocorrido em tempo real.
“Você não está passando bem?”; ecoa novamente a mesma frase, pronunciada por uma outra voz, numa modulação sonora distinta, mas procedente no mesmo lugar. O corpo performático, como num espasmo reflexo, a seu tempo, inclina-se e inicia uma torção a fim de reconhecer a fonte: primeiro, movimentam-se os olhos e, seqüencialmente, a cabeça, a coluna cervical, a dorsal, a lombar, vértebra por vértebra, uma a uma, e, por fim, seguindo a proposição decrouxniana, o quadril, desencadeando o movimento de todo o corpo. De súbito – a seu tempo, repito - num giro aproximado entre 270º e 360º, o corpo encontra-se de quatro, num devir canino, prato cheio para quem quiser correlacionar sem muito esforço homo sacer àquele ser indesejável, inclassificável, cuja vida nada vale, posto à margem na calçada, esquecido, que resiste inserido numa zona de indistinção. O corpo performático percebe/atualiza o odor de fezes caninas até então não identificado, não resistindo à ascaridíase - popularmente conhecida como lombriga, que se instala em meio à sujeira da rua, que obviamente foi eliminada posteriormente por drogas medicinais devastadoras.
A ação, sem dúvida, não termina aí. Ela expande-se e segue sem fim, num processo investigativo ininterrupto que poderia indiferentemente prosseguir por uma hora, duas, três ou mais. Entretanto, interrompida pela onipotência do tempo, levanto-me e caminho para o Goethe com a expectativa do encontro final transitoriamente conclusivo.
Impressões digitais dos meus “Itens de Primeira Necessidade”: Ação, construção, informação, significado, sistema, ambiente, corpo. Corpo-objeto, manipulado, descartado e deixado no canto no fundo da sala. Corpo-tapete, pesado, desajeitado, sujo, sem valor, em desuso, jogado, apodrecido, embolorado, rejeitado, indesejado. Corpo, corpo, corpo ...
Marcelo Evelin, agradeço-lhe imensamente a oportunidade de vivenciar esta experiência única; Jacob, desculpe-me por te jogar no chão assim, tão desprezadamente; Pessoas – Leonardo, Mab, Saulo, Alê, Líria, Fernando, Iara, Duto, Rita, Thaís, Lenira, Lucas, Ivan, Cipó, Enoque, Gil, Hudson, Alexandre, César e Lucas - , muitíssimo obrigada a todos. Será que eu esqueci de alguém?


Ressonâncias Baianas/Marcelo Evelin: http://www.demolitioninc.blogspot.com/

Eu, a Pipoca e os Urubus
Escrita etnográfica realizada a partir de pesquisa de campo na Igreja São Lázaro, Salvador/BA por S a n d r a C o r r a d i n i


Manhã. Caminho com passos apressados em direção à igreja distante nem sei quanto tempo de casa. Há sol. Atrasos de segunda são bastante comuns nos dias de hoje. Pessoas, diferentes de mim, caminham na rua em direção contrária. Descuidadas de seus finais de semana, transpiram seus dissabores adquiridos em calóricos pratos mal digeridos ao movimento das pernas que as deslocam neuróticas com a ilusão de que tudo novamente poderia começar do zero: Dia, dieta, distorções e novelas a bordo.
Caminho. Subo e desço ladeiras e montanhas de Salvador. Reconheço lugares por onde já passei, mas ainda restam dúvidas se estou no caminho certo. Esqueço. Deixo que me meu corpo se ache no rumo e no prumo e continuo indo em frente, sempre. Um senhor me responde: É logo ali. Na mangueira, você quebra à esquerda. Que horas são? Resisto em sabê-las... Nada adianta o tempo que as coisas têm.
Caminho. A rua é uma longa estrada em curvas de “S”, Sandra, que se dissolve num simples olhar que suspeita poder ser devorado pelos estômagos famintos dos urubus em busca de comida podre. Assombradamente ingênua, corro uma fuga em saltos esdrúxulos, tal como meus únicos companheiros ali presentes. Eu, puro devir. Sou urubu. Há asfalto e ninguém mais. Olho para trás, eles me olham. Olho para o lado e ele, outro, urubu sobre o muro, insiste em me dizer que eu ainda posso ser uma boa pedida. A curva em “S” não se acaba nunca, meu Deus! Ando respirando... do desesperado ao controladamente nervoso. Adiante, avisto carros, bandeiras e pessoas. Continuo andando. Mas já estou lá e não mais aqui. Quero chegar.
Cheguei. Tão logo lá eu me achava, sugeriram-me o banho. Alguns, como eu, estavam ali em busca de algo que lhe proporcionasse vivência, sensação e uma dose a mais de conhecimento. Observadores à distância.
O cenário pintado em cores defronte à branca Igreja de São Lázaro ambientava uma atmosfera suspensa e embebida em uma realidade não-cotidiana, onde pessoas e pipocas misturavam-se ao som das pequenas tiras de papel-manteiga movidas pelo vento, atraindo-me o olhar para o vermelho e branco das bandeiras desbotadas, intercaladas aos milhares sobre nossas cabeças, abaixo do céu azul. Algumas mesas com toalhas de rendas e cestos, e, ao lado, seres de vida transfigurados em ilustres personagens da fé baiana. Ora em pé, ora sentados, aguardavam ativos os devotos que por ali passavam para reafirmarem suas crenças sagradas.
Não reconheço ninguém naquele terreiro a não ser meu professor e os dispostos alunos que, como eu, decidimos, corajosos e compromissados, deixarmos nossos berços para empreender aquela aventura habitada pelo desconhecido.
Atravesso a rua e adentro aquele espaço em direção ao moço de azul, sentado em primeiro plano numa cadeira de plástico, tal qual doutor e dono de si perante os demais que, assim como ele, estavam a serviço da ordem do Senhor. Sou chamada: Venha cá! Uma voz feminina me interrompe o trajeto planejado, levando-me a mudar o foco a caminho do banho pretendido. Coloco-me à sua frente pronta para receber em meu corpo as tais pipocas que me haviam tirado tão cedo da cama.
Fecho os olhos, pés paralelos apoiados no chão e em posição ereta, permito que aquela senhora me abra os caminhos. Fecho os olhos e escuto: Deus te proteja, Deus te abençoe, Deus te abra os caminhos, Deus isso, Deus aquilo, Deus te livre de acidente, te livre de desastre de carro, de caminhão, avião, atropelamento, de queda, de susto, de afogamento, de indigestão, de vingança, inveja, fome, desordem, doença, tristeza, sapato apertado, pernilongo, espetáculo ruim, samba ruim, pagode ruim, comida ruim, cheiro ruim, transporte ruim e de tudo que há de mais ruim em meio a tantas desgraças que podem haver de acontecer comigo um dia. Curiosa para ver sua prece acontecer, possivelmente decorada há anos, entreabro os olhos durante sua fala e alcanço, através de sua boca, seus dentes. Todos eles, com obturações prateadas, moviam-se ao ritmo constante do abrir e fechar de sua mandíbula em sintonia com a emissão de suas palavras. Primeiro, foram os galhos de aroeira que varreram meu corpo: frente-trás e debaixo dos braços, de cima para baixo e de dentro para fora, limpa-se as impurezas depositadas na superfície e sob a pele. Depois, as pipocas, na seguinte ordem: ombro, tronco e cabeça: Duas vezes, sobe e desce, sobe e desce pelas laterais ao longo dos braços abaixados, da cintura à orelha e, por fim, após uma pausa sobre o topo da cabeça, jogar as poucas pipocas que restam nas mãos depois do final da prece. Todas as pipocas, que eram muitas, encontravam-se agora no chão, compondo, entre as pequenas pedras acimentadas do terreno, um painel-piso-suporte que também servia para aterrar aquelas almas. Inclusive eu.
Aproximo-me do cesto sobre a mesa montada com engradados de cerveja amarelos após o banho ritual. No cesto há pães, folhas e algumas moedas soltas. Deixe sua contribuição aqui, disse-me apontando o cesto aquela senhora vestida com rendas e, sob elas, uma longa saia rosa de cetim. Observo suas guias coloridas, seu ojá em tons marron-terra e seu rosto-corpo à espera de um ou dois reias apenas. Tiro dos bolsos minha contribuição já reservada, destinada a aquele fim, depositando-a no local que me foi indicado. O moço de azul que anteriormente estava sentado na cadeira de plástico, agora se encontrava sentado em um dos degraus da escada que interligava terreiro e igreja, e sorri para mim.
Sem ninguém na fila de espera para o próximo banho, curiosa, permito-me perguntar-lhes: Vocês estão sempre aqui? Todas as segundas a partir das seis, responde-me a mulher. Aproxima-se sua amiga igualmente vestida, porém, com saia verde, também de cetim. Seu ojá era de um amarelo ouro e suas guias, três, penduradas no pescoço, coloridas em cores que naquela hora eu preferi não me aprofundar.
Quer jogar búzios? Vocês jogam? Sim, mas não aqui. Nós vamos na sua casa. Mas eu não fico lá. Então, anota o meu endereço. Tem coisa aí pra limpar. Entre perguntas e respostas, iam organizando-se com papel e caneta e fazendo-me escrever seus nomes, os nomes de suas ruas, os números e seus telefones. Uma chamava-se Janete e a outra, a de saia verde, Vera. Prazer, retribui a ambas. Dirijo-me a Janete - ela pareceu-me mais íntima: Quanto vocês cobram? Cinqüenta reais. Você é daqui? Não, mas estou morando aqui. É, onde? Federação. Qual sua função? Eu danço. Mas é dança do ventre, é?, indaga-me Vera, aproximando-se. Não, é dança contemporânea. É que a gente tem uma amiga que faz dança do ventre. Curiosas, tal como eu, estendemos nossa conversa por um tempo indeterminado. Sem pararem em um lugar fixo, rodearam-me em perguntas, assim como eu, à espera de alguém que se aproximasse para o próximo banho de pipoca.
Começa a missa. É provável que seja a missa das oito, pensei. Observo um sino pintado de verde-bandeira na torre da igreja à esquerda, localizado ao alto, à minha frente, e constato que, por uma corda azul de naylon que dele se desprendia, alguém poderia fazê-lo soar da antiga janela verde-bandeira que ficava uns quatro ou cinco metros abaixo. Meu olhar percorre as paredes da igreja em busca de suas peculiaridades. Avisto cortinas azuis da cor do céu através da janela e as largas paredes da igreja na torre à direita. Procuro imaginar o que há lá dentro. São duas janelas idênticas, eqüidistantes em relação a uma grande porta de madeira também verde-bandeira central e aberta, compondo uma arquitetura aos moldes clássicos quase próximas da perfeição. São Lázaro, resguardado das intempéries do tempo, guardava do alto o terreiro, ao centro, bem acima da entrada principal. Mar ao fundo, horizonte, imensidão.
Janete, ao meu lado, segura-se como que pendurada a uma cruz de metal disposta a sua esquerda, completando a imagem “mesa, cesto, engradado, cadeira, cruz, aroeira, algumas flores e palmeira”, apoiada com sua mão direita sobre a cintura à espera da foto, do próximo banho, do novo cliente. Vera, do outro lado da mesa, fumava. Flash de máquina e de memória. Pomba-gira vestida de branco é uma outra possibilidade.
Pai Ricardo de Oxalá se aproxima e se apresenta a mim com um copo de munguzá na mão. É como canjica?, perguntei-lhe desinformada. É, todos aqui têm que tomar. É pra limpar. Pode tomar. E ofereceu-me o seu próprio copo. Experimentei o mungunzá. Doce, baiano e saboroso, com grãos que, para mim, sempre me pareceram a um grande dente do ciso muito mole e cozido. Toma e reza um Pai Nosso para ser abençoada, aconselha-me Pai Ricardo. Acato suas instruções e rezo com olhos fechados um Pai Nosso incompleto. Pai Ricardo também joga búzios e faz caridade. Disse que ia fazer para mim... A caridade.
Pai Ricardo de Oxalá é negro, quase preto, bem mais alto que eu, que Vera e que Janete também. Tem entre 1, 80 e 1,90 de altura, enorme. Arrisco-me em dizer que sua configuração avolumada causa a impressão de estar consideravelmente acima de seu peso ideal. Pai Ricardo é o homem da blusa azul que sorriu para mim, sentado no degrau da escada. Seu semblante de menino não revela os quinze anos além dos vinte e tantos que já tinha quando começou a trabalhar naquele terreiro. Desde então, acorda todas as segundas às três da madrugada, toma o ônibus e vai para o terreiro arrebanhar novos clientes para sua semana. Tem clientes em Salvador, no Rio, em São Paulo e outros espalhados pelo Brasil. Às vezes, visita-os a trabalho. Sua rotina de trabalho acontece em sua casa, próxima ao aeroporto, do lado oposto da cidade. Pai Ricardo de Oxalá, grande observador das imediações daquele terreiro.
Pai Ricardo vira-se e dá um passo à frente em direção a um possível cliente que se aproximava. Com os galhos de aroeira na mão, inicia outro ritual da pipoca: Mão esquerda encostada na testa do cliente, permanecer parado por alguns instantes com os olhos fechados. Diferente de Vera, com pipocas nas mãos, continua: de cima para baixo, da cabeça para os ombros, dos dois lados, desce e sobe, desce e sobe, duas vezes, terminar no topo da cabeça e jogar para o alto as pipocas que restarem nas mãos. Pegar os galhos de aroeira, colocá-los sobre a cabeça do devoto e pausar para destacar a prece: Deus te livre disso, Deus te livre daquilo e daquilo outro. Pegar a aroeira nas mãos: Frente-trás e debaixo dos braços, de cima para baixo e de dentro para fora. Os galhos varrem o corpo daquele homem, provável cliente, limpando-o das impurezas depositadas na superfície e sob sua pele. Afasto-me desconcertada por não saber se podia ou não ficar ali ao seu lado. Sento-me à beira da calçada e escrevo.
Somos chamados. Levantamos todos, eu, os alunos, um a um. Chovia. Caminhamos cada um em seu próprio tempo, em passos lentos, em direção à mesa do bar nem vinte metros de onde estávamos. Sentados, com caderno, caneta e registros caóticos daquela vivência única, falamos e lemos nossas impressões anotadas a punho e em silêncio. Quase todos.
Fecho o caderno, levanto-me da cadeira e vou para o carro, que até hoje não sei de quem é. No meio do caminho, páro e olho para trás. Nenhum ali me observa. Mas eles ainda estão lá, suspensos na terra, dentro daquele cenário, vivos. É cena de filme, comento. Ao meu lado, Fernando acrescenta: É uma cena cinematográfica.
Vou embora com Fernando tomar café e organizar minha jornada da semana. Aulas na graduação. Nesta semana haverá Páscoa e feriado. São apenas dez e meia da manhã.

15 maio 2009

Temporalidade em Dança
de Fabiana Dultra Britto
r e s e n h a
J u s s a r a S e t e n t a
O título do livro já anuncia a complexidade argumentativa e a rede de informações, ideias, conceitos e constatações trabalhada pela autora. Há uma preocupação premente em articular ideias próprias às ideias de demais autores, o que fortalece a noção de coautoria e compartilhamento de propósitos. Já no índice é possível observar outro modo de organizar as partes do livro, numa demonstração de que importa propor exercícios de entendimentos e compreensões aos leitores, exercícios esses regidos por nomeações metaforicamente especializadas e cuidadosamente apresentadas ao longo do corpo textual.
Da Carta das Des/Intenções ao Canteiro de Obras se chega à discussão do Como é o que Existe para encontrar-se com a apresentação de argumentos que demonstram a Trajetória Histórica não é um Processo Evolutivo; que A Dança é um Sistema Coevolutivo; que a Evolução é outra História e, a proposição de Exercícios de Equivalência. Em complementação às ideias em discussão, a autora acrescenta nos anexos títulos e breve comentário de publicações nacionais de livros de dança preocupando-se em apresentar os autores aos leitores. Ainda, expõe bibliografia separada por temas argumentativos num zeloso cuidado acadêmico com aqueles interessados em dar continuidade aos estudos lá apresentados.
Todo o trabalho tem o propósito de discutir a questão da temporalidade na dança oferecendo novos parâmetros que venham colaborar para estudos no campo da historiografia da dança. Para tanto, constrói mapa investigativo com vistas a indagar como o modelo teórico da historiografia pode conseguir explicar “o sentido evolutivo do processo de transformação histórica da dança [...]” (p.13). O diálogo com os autores Ilya Prigogine, Daniel Dennett, Richard Dawkins, Helena Katz, Jorge Vieira, dentre outros, colabora na organização do pensamento da autora acerca do modo como a história da dança vem sendo apresentada aos interessados em dança, que inclui aqueles que estão nas universidades, nas academias, nos grupos artísticos, em ONGs, grupos comunitários e instituições de ensino formal. São inúmeros os interessados, mas ainda desproporcional aos que publicam suas ideias e compreensões da história da dança do Brasil e do mundo no nosso país.
A aproximação desses teóricos permite à autora tecer uma trama argumentativa dialógica e questionadora da realidade das informações históricas da dança no Brasil ao indicar que é possível trabalhar com o entendimento da história enquanto processo em vez de entendê-la enquanto acontecimentos pontuais que expressam relações frágeis de espaço e tempo. Ao invés de decalcar conceitos e transportá-los para propósitos discursivos, a autora relaciona entendimentos, compreensões, fatos de dança com concepções teóricas compatíveis com os princípios críticos e reflexivos aos quais se atém. Importa à autora “[...] aproximar a dança dos princípios lógicos e conceitos científicos condizentes com seu modo de existir no mundo, configurar-se no corpo e articular-se no tempo[...]” (p.14). Este tecido teórico está disposto nas partes do livro que se preocupam com as afinidades entre dança e pressupostos científicos sem a intenção de fundir conceitos, mas apresentá-los em suas configurações teóricas de maneira relacional e compatível com as compreensões de seus contextos.
Na parte dos Exercícios de Equivalência, a autora expõe considerações aproximativas sobre temas que provocam posicionamentos e indicação conceitual, sendo eles: questão de enquadramento; identidade/nacionalidade; emergência; modelos de conjugação entre teoria e dança; flexibilidade adaptativa; a tese. Em todos os exercícios o foco recai sobre a dança contemporânea, isso porque a autora considera que a mesma “expressa uma lógica relacional não hierárquica entre corpo e mundo [...] se organiza à semelhança de uma operação metalinguística, na medida em que transfere a cada ato compositivo os papéis de gerador e gerenciador das suas próprias regras de estruturação” (p. 15).
Os exercícios descritivo-argumentativos expõem a responsabilidade e pensamento crítico da autora ao tratar das temáticas relacionadas às produções artísticas. Convém ressaltar que houve o cuidado na escolha dos artistas do mesmo modo que na escolha dos teóricos e elas (as escolhas) se aproximam por meio das concepções de mundo, espaço e tempo diferenciados. As concepções teóricas apresentam-se correlacionadas às concepções artísticas que, por sua vez, fazem parte do conjunto artístico-crítico-argumentativo da autora.
As ideias teóricas acerca da complexidade (Prigogine), de memes e design (Dawkins), da dança como pensamento do corpo (Katz) e dos parâmetros sistêmicos da Teoria Geral dos Sistemas (Uemov e Vieira) estão aqui destacadas e relacionadas às ideias/produções artísticas expressas no FID 2001 com The Show Must Go On (Jérôme Bel), Mono Subjects (Thomas Lehmen), Not To Know (Benoit Lachambre), Self Unfinished (Xavier Le Roy), Au Bord dês Métaphores (Rachid Ouramdane), Still Distinguished (Maria de La Ribot), Muzz e Lamont Earth Observatory (Sarah Chase), The Princess ProjectSummerspace e Biped (Merce Cunningham); El Trilogy (Trisha Brown), I sais I (Anne Teresa de Keersmaeker), Artérias: quando se perde o norteCravos (Pina Baush), MTD -90; O Corpo (Rodrigo Perdeneiras/Grupo Corpo). (Xavier Le Roy), (Cia. 2 Nova Dança), (Vicent Dunoyer), A autora traz em sua construção argumentativa a compreensão de história a partir de uma perspectiva de temporalidade assimétrica para interpretar e descrever sistemas culturais e propõe que a história da dança seja entendida não como “eventos locais que ocorrem num ponto dado do espaço e num instante dado da história” (p.52), mas como processos contínuos e difusos. Isso porque “[...] indivíduos e obras artísticas são únicos, mas implicados irremediavelmente numa mesma atividade global de organização do tempo - a história” (p.52).
O sentido processual e assimétrico proposto pela autora para pensar dança e história da dança estão compatíveis com considerações acerca da diferença entre justaposição e interação e “[...] da dinâmica de interação entre os componentes desses conjuntos (passos, acontecimentos) para tratá-los como sistemas e compreendê-los na sua complexidade ” (p.68). O entendimento de dança, história e historiografia tecido por Fabiana Britto conduz o leitor para exercícios não lineares de pensamento ao mesmo tempo em que convida a pensar os escritos de dança sob perspectiva crítico-reflexiva. Importa destacar que a pouca publicação de dança efetivada no nosso país é tratada pela autora não como sendo um atraso da dança, mas como “descompasso rítmico entre seu modo de ocorrer e a produção intelectual atualizada sobre sua ocorrência. Por falta de recursos teóricos competentes para lidar com questões conceitualmente sofisticadas, os temas difíceis relativos à sua especificidade artística mantiveram-se alojados no campo dos clichês e das licenças poéticas [...]” (p.20).
Essa consideração conduz à reflexão sobre o modo de pensar/falar/fazer dança realizado por professores, artistas, pesquisadores e outros. Faz refletir ainda sobre a ampliação dos cursos superiores em dança no país e sobre a relação entre formação e mercado prevista pela LDB 5692/96. Assim, a publicação dessas ideias em formato de livro colabora significativamente para o campo da dança e é um convite para o exercício de leitura desafiador, complexo e instigante, mas indispensável àqueles que tratam a dança respeitando suas especificidades e que trabalham pela promoção do entendimento de sua complexidade.

01 janeiro 2009

entreCorpos
o corpo na fronteira entre dança e performance

por Sandra Corradini


RESUMO


INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo discutir aspectos concernentes à obra Entrecorpos, ação intervencionista que propõe a investigação do corpo na fronteira dança/performance com interesse em questionar padrões de comportamento estáveis, problematizando-os na esfera relacional em espaços coletivos. Seu propósito circunscreve-se à necessidade de refletir a dança na contemporaneidade, em especial, de pensar corpo, espaço e espectador como partes co-dependentes e implicadas na obra de dança. Concebe-se a obra como objeto sensível tanto à presença do espectador, como ao espaço em que é realizada, devendo ser elaborada com enfoque na relação corpo-ambiente construindo-se continuamente, de modo a constituí-la porosa e permeável à fisicalidade do espaço e àqueles que nele circulam.
Uma questão bastante atual, os diálogos entre dança e artes plásticas, muito presentes no campo da dança, instalam-se na chamada fronteira, conhecida zona de conflitos, da qual emergem discussões, idéias e criações, incidindo em novas configurações, delineando novos contornos territoriais à dança. Discutir as relações dança/performance torna-se relevante diante da necessidade de refletir acerca de ações intervencionistas inscritas no campo da dança. Sob o foco do corpo-em-arte, o corpo requer treinamento adequado para ser lançado em experiência de liminaridade, induzindo-lhe fissuras que viabilizem novos agenciamentos, o que vem caracterizar o estado performático do corpo, fazendo da ação um acontecimento.


METODOLOGIA

De caráter interdisciplinar, a metodologia objetiva articular e integrar saberes e processos investigativos, visando a síntese no âmbito artístico da dança. Elaborada de acordo com o estabelecimento de eixos norteadores da pesquisa, a metodologia parte de uma pesquisa preliminar acerca dos estudos da performance, de Victor Turner e Richard Schechner, e da poética do corpo-em-arte, de Renato Ferracini (Lume Teatro), em busca de viabilizar instrumentalização conceitual para as investigações práticas em campo metodológico, tanto para a construção da obra, como para o treinamento corpóreo do atuador/bailarino.
Diante da proposta da obra e de sua condição efêmera articulada à transitoriedade de ambiências, incidindo sobre sua configuração, a metodologia considera as especificidades de cada espaço em que a obra é realizada, enfoca o planejamento e a investigação à priori e in loco e investe na elaboração de matrizes corpóreas, conjunto de células-fonte de ações/movimentos pré-selecionados e codificados, visando a improvisação e a recriação em tempo real.
Em contínuo processo investigativo, a obra, ainda em repertório, mantém-se condicionada a uma metodologia que se estende para além dos limites da sala de ensaio, inter-relacionando treinamento técnico-criativo, construção e execução da obra, implicando na necessidade de ser constantemente vivenciada, atualizada e reavaliada em seu plano conceitual e/ou metodológico e, se for o caso, reformulada em vista dos objetivos almejados.


RESULTADOS

Os resultados obtidos até o momento reiteram o caráter investigativo e experiencial da obra, tratando-se de uma ação presencial que se efetiva in loco e nas relações corpo-em-arte/espectador, corpos/ambiente, obra/espectador. Ressalta-se a co-dependência e a implicação entre corpo-em-arte, espaço e espectador, incidindo sobre a corporeidade do atuador/bailarino, sobre a configuração da obra e, sobretudo, na criação de zonas de turbulência, campos de tensão gerados pela energia produzida nas relações entre os elementos estruturais da ação. Observa-se a impossibilidade de reprodução deste momento em sala de ensaio, elevando-se a necessidade da obra estar sendo constantemente vivenciada, favorecendo seu processo de expansão e de detalhamento, bem como o aumento de sua estabilidade estrutural, que se afirma na medida em que é experienciada. Da mesma forma, observam-se os referenciais de pesquisa e os procedimentos metodológicos ganharem maior solidez por serem constantemente testados e validados. Enfatiza-se a importância de um treinamento específico voltado às particularidades da obra, centrado na atuação performativa do corpo, enfocando macro/micro-percepção, sensação e memória corporais, ampliação de vivência e agenciamento de sentidos. O estado liminar permeia o corpo-em-arte, que se move entre polaridades no processo de recriação da ação/movimento. A observação de padrões de comportamento é princípio metodológico, oferecendo elementos para criação.


CONCLUSÃO

A dança, arte do corpo, desde sua origem inscreve-se em cruzamentos híbridos e ao longo de seu processo evolutivo vem apresentando seus limites territoriais delinearem-se com novos contornos e relevos a partir dos diálogos estabelecidos com diferentes linguagens artísticas e campos do conhecimento. Zonas de passagem, de transição, de confluência... O que se observa é a sua complexificação e aumento de sua especificidade decorrente da busca pela sutilização do corpo inerente aos processos que conduzem às suas configurações. Esta pesquisa artística, inscrita no campo da dança, na fronteira dança/performance, focaliza corpo, espaço e espectador para preocupar-se com as inter-relações entre tais elementos e encontra o tempo potencializado no corpo, no movimento, na recriação e no devir, revelado no processo de elaboração da obra, nos procedimentos metodológicos realizados a partir de modos particulares de pensar e de fazer arte, próprios de um corpo que dança. O corpo, treinado para ser lançado em território cênico, na liminaridade dança-performance, um corpo expandido, em estado extra-cotidiano, um corpo-em-arte, deve se mover numa dança macro/micro-perceptiva e com ela restaurar o espaço-físico, atualizando e resignificando seus elementos através da recriação do movimento, e ao mesmo tempo, numa dança-ação extraordinária, irromper o cotidiano, causar estranhamento e deslocar o espectador do lugar de mero observador para participante na construção da obra, tornando-o co-autor.


Palavras-chave: Dança; performance; intervenção urbana.
Trabalho selecionado para a Mostra Ciência e Tecnologia da 6ª Bienal de Arte e Cultura da UNE - 2009.
Foto: Luciana Rodrigues.
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28 dezembro 2008

Para entender o pós-modernismo



A idéia de "pós-modernismo" surgiu pela primeira vez no mundo hispânico, na década de 1930, uma geração antes de seu aparecimento na Inglaterra ou nos EUA. Perry Anderson, conhecido pelos seus estudos dos fenômenos culturais e políticos contemporâneos, em "As Origens da Pós-Modernidade" (1999), conta que foi um amigo de Unamuno e Ortega, Frederico de Onís, que imprimiu o termo pela primeira vez, embora descrevendo um refluxo conservador dentro do próprio modernismo. Mas coube ao filósofo francês Jean-François Lyotard, com a publicação "A Condição Pós-Moderna" (1979), a expansão do uso do conceito.
Em sua origem, pós-modernismo significava a perda da historicidade e o fim da "grande narrativa" - o que no campo estético significou o fim de uma tradição de mudança e ruptura, o apagamento da fronteira entre alta cultura e da cultura de massa e a prática da apropriação e da citação de obras do passado.
A densa obra de Frederic Jameson
[1] "Pós-Modernismo" (1991), enumera como ícones desse movimento: na arte, Andy Warhol e a pop art, o fotorrealismo e o neo-expressionismo; na música, John Cage, mas também a síntese dos estilos clássico e "popular" que se vê em compositores como Philip Glass e Terry Riley e, também, o punk rock e a new wave"; no cinema, Godard; na literatura, William Burroughs, Thomas Pynchon e Ishmael Reed, de um lado, "e o nouveau roman francês e sua sucessão", do outro. Na arquitetura, entretanto, seus problemas teóricos são mais consistentemente articulados e as modificações da produção estética são mais visíveis.
Jameson aponta a imbricação entre as teorias do pós-modernismo e as "generalizações sociológicas" que anunciam um tipo novo de sociedade, mais conhecido pela alcunha "sociedade pós-industrial". Ele argumenta que "qualquer ponto de vista a respeito do pós-modernismo na cultura é ao mesmo tempo, necessariamente, uma posição política, implícita ou explícita, com respeito à natureza do capitalismo multinacional em nossos dias".
Vale observar que Perry Anderson, ao ser convidado a fazer a apresentação do livro de Jameson, terminou escrevendo o seu próprio “As origens da pós-modernidade”, constituindo assim uma espécie de ‘introdução’ ao conceito. Nele diz que o modernismo era tomado por imagens de máquinas [as indústrias] enquanto que o pós-modernismo é usualmente tomado por “máquinas de imagens” (p.105) da televisão, do computador, da Internet e do shopping centers. A modernidade era marcada pela excessiva confiança na razão, nas grandes narrativas utópicas de transformação social, e o desejo de aplicação mecânica de teorias abstratas à realidade. Jameson observa que “essas novas máquinas podem se distinguir dos velhos ícones futuristas de duas formas interligadas: todas são fontes de reprodução e não de ‘produção’ e já não são sólidos esculturais no espaço. O gabinete de um computador dificilmente incorpora ou manifesta suas energias específicas da mesma maneira que a forma de uma asa ou de uma chaminé” (citado por Anderson, p.105).
Para Gianni Vattino (2001) “a chamada "pós-modernidade" aparece como uma espécie de Renascimento dos ideais banidos e cassados por nossa modernidade racionalizadora. Esta modernidade teria terminado a partir do momento em que não podemos mais falar da história como algo de unitário e quando morre o mito do Progresso. É a emergência desses ideais que seria responsável por toda uma onda de comportamentos e de atitudes irracionais e desencantados em relação à política e pelo crescimento do ceticismo face aos valores fundamentais da modernidade. Estaríamos dando Adeus à modernidade, à Razão (Feyerabend) Quem acredita ainda que "todo real é racional e que todo real é racional"(Hegel)? Que esperança podemos depositar no projeto da Razão emancipada, quando sabemos que se financeiro submetido ao jogo cego do mercado? Como pode o homem ser feliz no interior da lógica do sistema, onde só tem valor o que funciona segundo previsões, onde seus desejos, suas paixões, necessidades e aspirações passam a ser racionalmente administrados e manipulados pela lógica da eficácia econômica que o reduz ao papel de simples consumidor”.
O pensador brasileiro Sérgio Paulo Rouanet no seu estudo “As origens do Iluminismo” (1987) oportunamente observa que o prefixo pós tem muito mais o sentido de exorcizar o velho (a modernidade) do que de articular o novo (o pós-moderno). Ou seja, o que há é uma “consciência de ruptura”, que o autor não considera uma “ruptura real”. Rouanet escreve:
“depois da experiência de duas guerras mundiais, depois de Aushwitz, depois de Hiroshima, vivendo num mundo ameaçado pela aniquilação atômica, pela ressurreição dos velhos fanatismos políticos e religiosos e pela degradação dos ecossistemas, o homem contemporâneo está cansado da modernidade. Todos esses males são atribuídos ao mundo moderno. Essa atitude de rejeição se traduz na convicção de que estamos transitando para um novo paradigma. O desejo de ruptura leva à convicção de que essa ruptura já ocorreu, ou está em vias de ocorrer (...). O pós-moderno é muito mais a fadiga crepuscular de uma época que parece extinguir-se ingloriosamente que o hino de júbilo de amanhãs que despontam. À consciência pós-moderna não corresponde uma realidade pós-moderna. Nesse sentido, ela é um simples mal-estar da modernidade, um sonho da modernidade. É literalmente, falsa consciência, porque consciência de uma ruptura que não houve, ao mesmo tempo, é também consciência verdadeira, porque alude, de algum modo, às deformações da modernidade”.


Esquerda e a pós-modernidade

A esquerda tradicional, no Brasil, torce o nariz com o termo pós-modernidade. Cito dois exemplos: o historiador Ciro Flamarion Cardoso (1994), diz que o “paradigma pós-moderno” é fundado no anti-racionalismo subjetivista, “desconstrutivista”, na denuncia dos excessos da ciência. Cardoso desconfia da retórica dos pós-modernistas, por vezes, apodíticas, com afirmações apresentadas como se fossem axiomáticas e auto-evidentes. Reclama, ainda, do desleixo teórico e metodológico de seus argumentos.
Também Dermerval Saviani (1992 e 1997), que é um dos expoentes da filosofia da educação brasileira, na sua pedagogia histórico-crítica, de fundamentação marxista, reconhece no pós-moderno tão somente efeitos de uma época de “fragmentação” e “superficialidade”, um período de “decadência da cultura”, de “esvaziamento do trabalho pedagógico na escola”, enfim, seria mais um meio ardiloso da produção ideológica ‘pós-capitalista’ para encobrir a percepção dos homens a respeito do desenvolvimento histórico. Jameson também teria “identificado firmemente o pós-modernismo com um estágio do capitalismo, entendido segundo os clássicos termos marxistas”
[2].
No fundo, parece existir nestes argumentos acima, uma espécie de ciúme ou receio de que “a pós-modernidade seria um suposto período onde a burguesia deixaria de ser classe revolucionária e passaria a ser classe dominante, e, assim fazendo, voltar-se-ia contra a própria cultura pois, agora, teria que se perpetuar no poder através, embora não exclusivamente, de mecanismos ideológicos” (dito por GHIRALDELLI Jr, 1994). Ou seja, a tendência marxista da pedagogia brasileira opta pela modernidade e despreza a idéia de pós-modernidade por esta insinuar o esvaziamento do caminho dogmático rumo ao socialismo, via revolução.
Os sinais do pós-modernismo que mais parecem incomodar a esquerda tradicional e a direita reacionária, resumindo, são: no campo político, a atitude desinteressada, despolitizada (no sentido tradicional); os pós-modernos, aparentemente falam e agem sem o peso da “angústia de influencia” (Bloom). Também são avessos aos extremismos clássicos, do tipo “esquerda-progressista” e “direita-conservadora”, uma vez que acreditam estarem estas definitivamente superadas. Os pós-modernistas, como já foi dito, descartam a idéia de revolução como passaporte necessário para uma “nova sociedade", um "novo homem” e uma “nova felicidade realista” “sem classes” e “sem desigualdade”. Valer dizer que além da descrença, existe o fato das revoluções ocorridas no socialismo real, resultaram em totalitarismos, fracasso econômico e decepção da população obrigada a conviver com a falta de liberdade. No campo da arte e na estética, parece incomodar a “emancipação do vulgar” e a mistura de gêneros. No campo da moral, existe a tendência a tolerância, o respeito as diferenças humanas, o pluralismo radical, ou seja, “sem inimigos a derrotar”; por vezes, também parecem se posicionar numa atitude de neutralidade moral frente às discussões que se encaminham para polarizações que cheiram ao maniqueísmo. No campo da educação, existe o discurso por um ensino e uma pesquisa inter ou transdisciplinar. Aqui, a crítica maior é dirigida ao ensino cientificista, especializado, que teima em fazer apologia do progresso, cego aos seus ‘efeitos colaterais’. O culto ao progresso, o culto da ciência e o culto da razão
[3], e o desprezo às outras formas de conhecimento, são características da modernidade, do iluminismo, cujos efeitos colaterais pudemos sentir ao longo do século 20. Na verdade, o progresso científico e da industrialização, fez abrir a caixa de Pandora, cujos efeitos são visíveis nos dados ao meio ambiente, na violência urbana e na pobreza dos homens. Na filosofia, aparece à oposição a tradição essencialista, a adoção pela pluralidade de argumentos, com a proliferação de paradoxos e do paralogismo – antecipadas na filosofia de Nietzsche, Wittgenstein e Levinas. No campo epistemológico, o sujeito pós-moderno desconfia dos “grandes sistemas teóricos” ou da “grande idéia”, que, no fundo é de inspiração religiosa – visto que são as religiões que sempre prometem a felicidade (uma “idade de ouro”) num tempo futuro[4]. As religiões vivem deste tipo de propaganda enganosa.
A ação política pós-moderna, descrente da ação política tradicional (partidos políticos, sindicatos, eleição de representantes, etc), prefere atuar através de ações voluntárias através de ONGs, bem como nos atos mais ou menos espontâneos de grupos e de sujeitos que investem, por exemplo, em melhorar a saúde da sociedade. São as ações pró educação para diminuir a violência no trânsito, ações pró educação ambiental, a luta pela extinção do tabagismo e das drogas, a prevenção da DST e AIDS, a participação de ações contra a fome, prestar serviço para a eliminação do analfabetismo, a participação nos projetos e-learning, etc, podem ser de inspiração pós-modernista
[5].


Alguns sintomas no sujeito pós-moderno


Rouanet se arrisca em fazer uma psicopatologização ao considerar, primeiro, o moderno essencialmente como contraditório. É na modernidade que Freud e depois mais radicalmente W. Reich, ambos estabelecem a conexão repressão sexual e enfermidades mentais. Segundo, a sociedade pós-moderna irá favorecer o surgimento de um hedonismo socializado pela mídia e, de certa forma, respondida pela própria sociedade como sintoma “sociedade espetáculo” (Debord).
Na sociedade ocidental pós-moderna a visibilidade de cenas tende a ser obscena, quando exclui a dimensão da subjetividade e da privacidade das pessoas. Ou seja, anula-se a dimensão do privado, tornando “tudo” público, do cotidiano dos ansiosos por fama dos ex-anônimos do programa televisivo Big Brother, aos já famosos da revista Caras, e, também, o ritual histérico dos evangélicos, dos carismáticos e islâmicos, que se oferecem para serem vistos pela televisão seduzindo todos com suas “justas causas”, aos miseráveis igualmente noticiados e fotografados decorrentes de algum fato jornalístico.
Os sintomas de obscenidade da era moderna de exploração sexual ou de exploração do trabalho, operavam sempre no oculto, eram marginalizadas aos subterrâneos da vida social. Os dispositivos ideológicos de manutenção das cosias como estavam, eram a opressão social, a repressão psíquica e o trabalho ideológico de recondução da libido para fins de trabalho ou exploração industrial; hoje, na sociedade pós-moderna, reforçando o que foi dito acima, operam mecanismos de promoção da visibilidade do que era privado, como se decretasse o fim do segredo ou o fim da intimidade.
A doença da era moderna era a histeria, onde ocorria a teatralização do sujeito incapaz de suportar tanta repressão, originada no conflito endopsíquico. Freud funda a psicanálise graças às histéricas que lhe insinuam um gozo impossível. O mal-estar da cultura pós-moderna é mais complexo, os sintomas subjetivos se pulverizaram no disfarce coletivo, parecendo que “estamos todos bem”, tal como auto-enganava o personagem de Marcelo Mastroianni, no filme italiano de mesmo nome. O mal-estar pós-moderno é visível e trivial, expressado na linguagem do cotidiano do trabalho compulsivo, muitas vezes vendido como se fosse “lazer” ou “ócio criativo”, que gera stress, a perversão, a depressão, a obesidade, o tédio.
Em termos de patologia social, a modernidade fez surgir coisas contraditórias como indústrias e a atitude liberal, a ciência, a tecnologia, a multiplicação da população pobre e de guerras racionais. A pós-modernidade marca o declínio da Lei-do-Pai, cujo efeito mais imediato no social é a anomia, onde a perversão se vê livre para se manifestar em diversas formas, como na violência urbana, no terrorismo, nas guerras ideologicamente consideradas “justas”, “limpas” ou “cirúrgicas”. A razão cínica é cada vez mais instrumentalizada. Isto é, não basta ser transgressivo, ou perverso-imoral, é preciso se construir uma justificativa “moral” para atos imorais ou perversos. Zizek (2004) cita o escabroso caso dos necrófilos, nos EUA, que se julgam no “direito” de fazer sexo com cadáveres. Ou seja, qualquer cadáver é “um potencial parceiro sexual ideal de sujeitos ‘tolerantes’ que tentam evitar toda e qualquer forma de molestamento: por definição, não há como molestar um cadáver”.
Na pós-modernidade a perversão e o estresse são sintomas resultados da falta-de-lei, da falta-de-tempo, e da falta-de-perspectiva de futuro, porque tudo se desmoronou (do muro de Berlin a crença nos valores e na esperança). “Tudo se tornou demasiadamente próximo, promíscuo, sem limites, deixando-se penetrar por todos os poros e orifícios”, diz Zizek.
Nossa sociedade é regida mais do que pela ânsia de “espetáculo”; existe a ânsia de prazer a qualquer preço, não made in id [Isso] mas made in Superego. O superego pós-moderno “tudo vale” e “tudo deve porque pode”. Todos se sentem na obrigação de se divertir, de “curtir a vida adoidado” e de “trabalhar muito para ter dinheiro ou prestígio social”, não importando os limites de si próprio e dos outros. As pessoas se sentem no dever de se vender como se fosse um prazer, de fazer ceia de natal em casa à meia noite, de comemorar o gol que todo mundo está comemorando, de curtir o carnaval nos 3 ou 4 dias, de seguir uma religião, de usar celular sem motivo concreto, de gastar o dinheiro que não têm, de trepar toda noite porque todos dão a impressão de fazê-lo, de fazer cursos e mais cursos, ascender na empresa, escrever mil e um artigos por ano na universidade, enfim, todos parecem viver na “obrigação” de se cumprir uma ordem invisível, e de ser visivelmente feliz e vencedor. O senhor invisível que no manda é o superego pós-moderno; “ele manda você sentir prazer naquilo que você é obrigado a fazer”. E, ai daquele que não consegue, ou que se nega seguir a moral de rebanho, pagará de três modos: será estigmatizado pelos seus pares (“Ele quebrou o código, é um traidor do super-ego pós-moderno!”), ou pagará com um terrível sentimento de culpa ou, ainda, sofrerá os sintomas de uma doença psicossomática.
Não é sem motivo que os lugares de trabalho em que a competição é mais acirrada, onde não existem limites definidos entre trabalho, estudo e lazer, que encontramos pessoas queixosas, infelizes, freqüentemente visitando os médicos e hospitais. Se a modernidade prometia a felicidade através do progresso da ciência ou de uma revolução, a pós-modernidade promete um nada que pretende ser o solo para tudo.

[1] Perry Anderson considera Jameson um sujeito bem à esquerda de qualquer das fuguras incluídas nesse levantamento [p.77].
[2] Anderson, 1999: p. 77.
[3] Cf.: Japiassu, 2001.
[4] Japiassu (op. cit, p. 167 e 182-3) observa que a crença da marcha ascendente da humanidade em direção a um telos (fim), têm inspiração num desígnio traçado e querido por Deus para o bem da humanidade. A idéia de progresso (característica do Ocidente a partir do iluminismo e da Revolução Francesa) remonta às nossas fontes judaico-cristãs. A maioria de outras civilizações vive sem a idéia de progresso. Algumas chegam mesmo a recusar toda crença na historicidade. Para o hiduísmo, por exemplo, o homem não sai do eterno retorno. Para o budismo, o sujeito deve libertar-se dos acontecimentos, portanto da História. O mesmo se aplica ao sujeito da história, por exemplo, para o taoísmo “o único desejo autorizado é não ter desejos” (Cf.: Lao Tsé, em Tao te king) .
[5] Notem que essas ações antigamente – e ainda hoje - são criticadas pela esquerda marxista como “filantropista”, “reformista”, etc.