13 julho 2009

Eu, a Pipoca e os Urubus
Escrita etnográfica realizada a partir de pesquisa de campo na Igreja São Lázaro, Salvador/BA por S a n d r a C o r r a d i n i


Manhã. Caminho com passos apressados em direção à igreja distante nem sei quanto tempo de casa. Há sol. Atrasos de segunda são bastante comuns nos dias de hoje. Pessoas, diferentes de mim, caminham na rua em direção contrária. Descuidadas de seus finais de semana, transpiram seus dissabores adquiridos em calóricos pratos mal digeridos ao movimento das pernas que as deslocam neuróticas com a ilusão de que tudo novamente poderia começar do zero: Dia, dieta, distorções e novelas a bordo.
Caminho. Subo e desço ladeiras e montanhas de Salvador. Reconheço lugares por onde já passei, mas ainda restam dúvidas se estou no caminho certo. Esqueço. Deixo que me meu corpo se ache no rumo e no prumo e continuo indo em frente, sempre. Um senhor me responde: É logo ali. Na mangueira, você quebra à esquerda. Que horas são? Resisto em sabê-las... Nada adianta o tempo que as coisas têm.
Caminho. A rua é uma longa estrada em curvas de “S”, Sandra, que se dissolve num simples olhar que suspeita poder ser devorado pelos estômagos famintos dos urubus em busca de comida podre. Assombradamente ingênua, corro uma fuga em saltos esdrúxulos, tal como meus únicos companheiros ali presentes. Eu, puro devir. Sou urubu. Há asfalto e ninguém mais. Olho para trás, eles me olham. Olho para o lado e ele, outro, urubu sobre o muro, insiste em me dizer que eu ainda posso ser uma boa pedida. A curva em “S” não se acaba nunca, meu Deus! Ando respirando... do desesperado ao controladamente nervoso. Adiante, avisto carros, bandeiras e pessoas. Continuo andando. Mas já estou lá e não mais aqui. Quero chegar.
Cheguei. Tão logo lá eu me achava, sugeriram-me o banho. Alguns, como eu, estavam ali em busca de algo que lhe proporcionasse vivência, sensação e uma dose a mais de conhecimento. Observadores à distância.
O cenário pintado em cores defronte à branca Igreja de São Lázaro ambientava uma atmosfera suspensa e embebida em uma realidade não-cotidiana, onde pessoas e pipocas misturavam-se ao som das pequenas tiras de papel-manteiga movidas pelo vento, atraindo-me o olhar para o vermelho e branco das bandeiras desbotadas, intercaladas aos milhares sobre nossas cabeças, abaixo do céu azul. Algumas mesas com toalhas de rendas e cestos, e, ao lado, seres de vida transfigurados em ilustres personagens da fé baiana. Ora em pé, ora sentados, aguardavam ativos os devotos que por ali passavam para reafirmarem suas crenças sagradas.
Não reconheço ninguém naquele terreiro a não ser meu professor e os dispostos alunos que, como eu, decidimos, corajosos e compromissados, deixarmos nossos berços para empreender aquela aventura habitada pelo desconhecido.
Atravesso a rua e adentro aquele espaço em direção ao moço de azul, sentado em primeiro plano numa cadeira de plástico, tal qual doutor e dono de si perante os demais que, assim como ele, estavam a serviço da ordem do Senhor. Sou chamada: Venha cá! Uma voz feminina me interrompe o trajeto planejado, levando-me a mudar o foco a caminho do banho pretendido. Coloco-me à sua frente pronta para receber em meu corpo as tais pipocas que me haviam tirado tão cedo da cama.
Fecho os olhos, pés paralelos apoiados no chão e em posição ereta, permito que aquela senhora me abra os caminhos. Fecho os olhos e escuto: Deus te proteja, Deus te abençoe, Deus te abra os caminhos, Deus isso, Deus aquilo, Deus te livre de acidente, te livre de desastre de carro, de caminhão, avião, atropelamento, de queda, de susto, de afogamento, de indigestão, de vingança, inveja, fome, desordem, doença, tristeza, sapato apertado, pernilongo, espetáculo ruim, samba ruim, pagode ruim, comida ruim, cheiro ruim, transporte ruim e de tudo que há de mais ruim em meio a tantas desgraças que podem haver de acontecer comigo um dia. Curiosa para ver sua prece acontecer, possivelmente decorada há anos, entreabro os olhos durante sua fala e alcanço, através de sua boca, seus dentes. Todos eles, com obturações prateadas, moviam-se ao ritmo constante do abrir e fechar de sua mandíbula em sintonia com a emissão de suas palavras. Primeiro, foram os galhos de aroeira que varreram meu corpo: frente-trás e debaixo dos braços, de cima para baixo e de dentro para fora, limpa-se as impurezas depositadas na superfície e sob a pele. Depois, as pipocas, na seguinte ordem: ombro, tronco e cabeça: Duas vezes, sobe e desce, sobe e desce pelas laterais ao longo dos braços abaixados, da cintura à orelha e, por fim, após uma pausa sobre o topo da cabeça, jogar as poucas pipocas que restam nas mãos depois do final da prece. Todas as pipocas, que eram muitas, encontravam-se agora no chão, compondo, entre as pequenas pedras acimentadas do terreno, um painel-piso-suporte que também servia para aterrar aquelas almas. Inclusive eu.
Aproximo-me do cesto sobre a mesa montada com engradados de cerveja amarelos após o banho ritual. No cesto há pães, folhas e algumas moedas soltas. Deixe sua contribuição aqui, disse-me apontando o cesto aquela senhora vestida com rendas e, sob elas, uma longa saia rosa de cetim. Observo suas guias coloridas, seu ojá em tons marron-terra e seu rosto-corpo à espera de um ou dois reias apenas. Tiro dos bolsos minha contribuição já reservada, destinada a aquele fim, depositando-a no local que me foi indicado. O moço de azul que anteriormente estava sentado na cadeira de plástico, agora se encontrava sentado em um dos degraus da escada que interligava terreiro e igreja, e sorri para mim.
Sem ninguém na fila de espera para o próximo banho, curiosa, permito-me perguntar-lhes: Vocês estão sempre aqui? Todas as segundas a partir das seis, responde-me a mulher. Aproxima-se sua amiga igualmente vestida, porém, com saia verde, também de cetim. Seu ojá era de um amarelo ouro e suas guias, três, penduradas no pescoço, coloridas em cores que naquela hora eu preferi não me aprofundar.
Quer jogar búzios? Vocês jogam? Sim, mas não aqui. Nós vamos na sua casa. Mas eu não fico lá. Então, anota o meu endereço. Tem coisa aí pra limpar. Entre perguntas e respostas, iam organizando-se com papel e caneta e fazendo-me escrever seus nomes, os nomes de suas ruas, os números e seus telefones. Uma chamava-se Janete e a outra, a de saia verde, Vera. Prazer, retribui a ambas. Dirijo-me a Janete - ela pareceu-me mais íntima: Quanto vocês cobram? Cinqüenta reais. Você é daqui? Não, mas estou morando aqui. É, onde? Federação. Qual sua função? Eu danço. Mas é dança do ventre, é?, indaga-me Vera, aproximando-se. Não, é dança contemporânea. É que a gente tem uma amiga que faz dança do ventre. Curiosas, tal como eu, estendemos nossa conversa por um tempo indeterminado. Sem pararem em um lugar fixo, rodearam-me em perguntas, assim como eu, à espera de alguém que se aproximasse para o próximo banho de pipoca.
Começa a missa. É provável que seja a missa das oito, pensei. Observo um sino pintado de verde-bandeira na torre da igreja à esquerda, localizado ao alto, à minha frente, e constato que, por uma corda azul de naylon que dele se desprendia, alguém poderia fazê-lo soar da antiga janela verde-bandeira que ficava uns quatro ou cinco metros abaixo. Meu olhar percorre as paredes da igreja em busca de suas peculiaridades. Avisto cortinas azuis da cor do céu através da janela e as largas paredes da igreja na torre à direita. Procuro imaginar o que há lá dentro. São duas janelas idênticas, eqüidistantes em relação a uma grande porta de madeira também verde-bandeira central e aberta, compondo uma arquitetura aos moldes clássicos quase próximas da perfeição. São Lázaro, resguardado das intempéries do tempo, guardava do alto o terreiro, ao centro, bem acima da entrada principal. Mar ao fundo, horizonte, imensidão.
Janete, ao meu lado, segura-se como que pendurada a uma cruz de metal disposta a sua esquerda, completando a imagem “mesa, cesto, engradado, cadeira, cruz, aroeira, algumas flores e palmeira”, apoiada com sua mão direita sobre a cintura à espera da foto, do próximo banho, do novo cliente. Vera, do outro lado da mesa, fumava. Flash de máquina e de memória. Pomba-gira vestida de branco é uma outra possibilidade.
Pai Ricardo de Oxalá se aproxima e se apresenta a mim com um copo de munguzá na mão. É como canjica?, perguntei-lhe desinformada. É, todos aqui têm que tomar. É pra limpar. Pode tomar. E ofereceu-me o seu próprio copo. Experimentei o mungunzá. Doce, baiano e saboroso, com grãos que, para mim, sempre me pareceram a um grande dente do ciso muito mole e cozido. Toma e reza um Pai Nosso para ser abençoada, aconselha-me Pai Ricardo. Acato suas instruções e rezo com olhos fechados um Pai Nosso incompleto. Pai Ricardo também joga búzios e faz caridade. Disse que ia fazer para mim... A caridade.
Pai Ricardo de Oxalá é negro, quase preto, bem mais alto que eu, que Vera e que Janete também. Tem entre 1, 80 e 1,90 de altura, enorme. Arrisco-me em dizer que sua configuração avolumada causa a impressão de estar consideravelmente acima de seu peso ideal. Pai Ricardo é o homem da blusa azul que sorriu para mim, sentado no degrau da escada. Seu semblante de menino não revela os quinze anos além dos vinte e tantos que já tinha quando começou a trabalhar naquele terreiro. Desde então, acorda todas as segundas às três da madrugada, toma o ônibus e vai para o terreiro arrebanhar novos clientes para sua semana. Tem clientes em Salvador, no Rio, em São Paulo e outros espalhados pelo Brasil. Às vezes, visita-os a trabalho. Sua rotina de trabalho acontece em sua casa, próxima ao aeroporto, do lado oposto da cidade. Pai Ricardo de Oxalá, grande observador das imediações daquele terreiro.
Pai Ricardo vira-se e dá um passo à frente em direção a um possível cliente que se aproximava. Com os galhos de aroeira na mão, inicia outro ritual da pipoca: Mão esquerda encostada na testa do cliente, permanecer parado por alguns instantes com os olhos fechados. Diferente de Vera, com pipocas nas mãos, continua: de cima para baixo, da cabeça para os ombros, dos dois lados, desce e sobe, desce e sobe, duas vezes, terminar no topo da cabeça e jogar para o alto as pipocas que restarem nas mãos. Pegar os galhos de aroeira, colocá-los sobre a cabeça do devoto e pausar para destacar a prece: Deus te livre disso, Deus te livre daquilo e daquilo outro. Pegar a aroeira nas mãos: Frente-trás e debaixo dos braços, de cima para baixo e de dentro para fora. Os galhos varrem o corpo daquele homem, provável cliente, limpando-o das impurezas depositadas na superfície e sob sua pele. Afasto-me desconcertada por não saber se podia ou não ficar ali ao seu lado. Sento-me à beira da calçada e escrevo.
Somos chamados. Levantamos todos, eu, os alunos, um a um. Chovia. Caminhamos cada um em seu próprio tempo, em passos lentos, em direção à mesa do bar nem vinte metros de onde estávamos. Sentados, com caderno, caneta e registros caóticos daquela vivência única, falamos e lemos nossas impressões anotadas a punho e em silêncio. Quase todos.
Fecho o caderno, levanto-me da cadeira e vou para o carro, que até hoje não sei de quem é. No meio do caminho, páro e olho para trás. Nenhum ali me observa. Mas eles ainda estão lá, suspensos na terra, dentro daquele cenário, vivos. É cena de filme, comento. Ao meu lado, Fernando acrescenta: É uma cena cinematográfica.
Vou embora com Fernando tomar café e organizar minha jornada da semana. Aulas na graduação. Nesta semana haverá Páscoa e feriado. São apenas dez e meia da manhã.

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