13 julho 2009

Impressões digitais: "itens de primeira necessidade"
por Sandra Corradini




Dias e dias Pós–Marcelo se passaram desde o “Itens de Primeira Necessidade” na terceira maior metrópole brasileira. Meu corpo-memória em São Paulo ativa outro espaço, ambiente, contexto, a cidade de Salvador. É domingo, doze de julho de 2009. Visualizo o Corredor da Vitória, em cima da terra o Goethe e dentro dele o teatro. Fora dele, sua parede externa amarela delimita seu espaço a poucos passos da imponência do hotel para onde caminho do outro lado da rua. Nesta paisagem ainda inclui-se a igreja na praça com o enorme urso de pelúcia pendurado enforcado na lança da grade de ferro visto ao fundo na foto bem como o museu e sua porta de entrada aberta a um degrau da calçada, o condomínio com sua fachada pós-moderna clean e preta, e o suor absorvido pelo compensado quente que inviabiliza acesso à construção bem próxima ao corpo que insiste em se lançar contra a parede dura. A dona da loja transparente de presentes isola-se atrás da porta fechada de entrada e o cabelo baiano transfigura-se em frente ao salão de beleza. O posto/Mac e o balão e o carro são coloridos, mas o beco ao lado da banca de revista que abriga um rosto-cabeça-cérebro não identificado à frente do backlight da Vivo é sombrio. O corpo scorceseano jogado “After Hours” no asfalto ao lado da caçamba estacionária tipo “brook” está tal qual o corpo adormecido sonhando sentado encostado no muro da casa vazia. Há um outro corpo que ainda respira em pé no entroncamento onde vias confluem à praça central, outro que se flexiona contra o desejo que não acende mais e outros dois que se (i)mobilizam na sarjeta, frente a frente, plastificados, a um passo do ônibus e do abismo. Mas ainda há não sei quantos outros corpos em outros lugares inscritos no corpo-memória de cada ser que observa, fala, grita, ri, agride, comenta, colabora, se aproxima, desvia, rejeita tais ações e são vistos.
Embrulhada feito pão quente em papel kraft, atravesso solitária a rua em direção entre arte e vida. Sento-me ao lado esquerdo da árvore, de costas bem em frente ao hotel, de onde avisto um carrinho de cachorro quente ou de pipoca bem em frente ao portão principal da escola do outro lado da rua. O vendedor parado me olha e percebe que eu o olho parada. E novamente eu o olho, ele me olha, e nós, aparentemente parados, continuamos nos olhamos. “Você não está passando bem?”, cuida-me uma voz que anda atrás de mim, que, sem resposta, é levada ao vento, vitoriosa, do centro à praia, onde todos os dias o sol se põe atrás do mar. “Ela está olhando pra mim”, pronuncia-se o vendedor que me olha do outro lado da rua. Próximo dele, Marcelo clica a foto, congelando vontade e seu contrário, tensionados em meu corpo que resiste cinético, sinestésico, sintético, estético, performático, investigativo, experimental.
No início, é ou parece ser simples: o corpo move-se pela escuta e seleção de forças opostas que ele próprio elege ao se inserir num campo onde a regra é confrontar automatismo inerente ao desejo que o move versus resistência à configuração deste corpo autômato e criar espaço para novas investidas em diferentes direções e sentidos para o movimento. Evidenciam-se as relações de poder e linhas de fugas no próprio corpo performático, tensionado, percebido, configurado e reconfigurado a cada percepção e impulso na sua relação com o ambiente. A verticalização na ação ocorre ao longo dos aproximados quarenta e cinco minutos da ação performática, em camadas, na medida em que os princípios configuradores da relação forma/conteúdo investigada são estabilizados no corpo. Somam-se, então, a seleção e a aleatoriedade das reverberações incidentes no momento da ação advindas dos estudos realizados em processo de ensaio bem como as associações produzidas pelo corpo e no corpo entre estes e as percepções do ambiente em que este executa a ação. Som, luz, calor, odor são estímulos para a ação performática; esta, resultante do processo de construção/organização das informações presentes e das que atravessam o corpo na sua relação com o ambiente, ocorrido em tempo real.
“Você não está passando bem?”; ecoa novamente a mesma frase, pronunciada por uma outra voz, numa modulação sonora distinta, mas procedente no mesmo lugar. O corpo performático, como num espasmo reflexo, a seu tempo, inclina-se e inicia uma torção a fim de reconhecer a fonte: primeiro, movimentam-se os olhos e, seqüencialmente, a cabeça, a coluna cervical, a dorsal, a lombar, vértebra por vértebra, uma a uma, e, por fim, seguindo a proposição decrouxniana, o quadril, desencadeando o movimento de todo o corpo. De súbito – a seu tempo, repito - num giro aproximado entre 270º e 360º, o corpo encontra-se de quatro, num devir canino, prato cheio para quem quiser correlacionar sem muito esforço homo sacer àquele ser indesejável, inclassificável, cuja vida nada vale, posto à margem na calçada, esquecido, que resiste inserido numa zona de indistinção. O corpo performático percebe/atualiza o odor de fezes caninas até então não identificado, não resistindo à ascaridíase - popularmente conhecida como lombriga, que se instala em meio à sujeira da rua, que obviamente foi eliminada posteriormente por drogas medicinais devastadoras.
A ação, sem dúvida, não termina aí. Ela expande-se e segue sem fim, num processo investigativo ininterrupto que poderia indiferentemente prosseguir por uma hora, duas, três ou mais. Entretanto, interrompida pela onipotência do tempo, levanto-me e caminho para o Goethe com a expectativa do encontro final transitoriamente conclusivo.
Impressões digitais dos meus “Itens de Primeira Necessidade”: Ação, construção, informação, significado, sistema, ambiente, corpo. Corpo-objeto, manipulado, descartado e deixado no canto no fundo da sala. Corpo-tapete, pesado, desajeitado, sujo, sem valor, em desuso, jogado, apodrecido, embolorado, rejeitado, indesejado. Corpo, corpo, corpo ...
Marcelo Evelin, agradeço-lhe imensamente a oportunidade de vivenciar esta experiência única; Jacob, desculpe-me por te jogar no chão assim, tão desprezadamente; Pessoas – Leonardo, Mab, Saulo, Alê, Líria, Fernando, Iara, Duto, Rita, Thaís, Lenira, Lucas, Ivan, Cipó, Enoque, Gil, Hudson, Alexandre, César e Lucas - , muitíssimo obrigada a todos. Será que eu esqueci de alguém?


Ressonâncias Baianas/Marcelo Evelin: http://www.demolitioninc.blogspot.com/

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